São tempos nublados para a cultura, seja lá qual for o significado pretendido para a palavra. Uma pandemia que se reproduz e se fortalece graças a decisões governamentais rechaça o conhecimento e arrisca afogar boas descobertas do acervo deixado pela humanidade. O que inclui boas descobertas literárias.
Espera-se que esse não seja o caso com Vassíli Makárovitch Chukchin (1929-1974), escritor, ator, cenógrafo e diretor de cinema soviético desconhecido no Brasil que acaba de ter cinco de seus contos traduzidos por aqui. A demanda, feita diretamente do russo, foi realizada pela pesquisadora Diana Soares Cardoso em sua dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.
Antes do trabalho de Diana, apenas um conto de Chukchin havia recebido tradução no Brasil, Dá-lhe, Coração!, incluído na Nova Antologia do Conto Russo, da Editora 34, também publicado no número 9 da Magma, revista do Programa de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Na época, a tarefa coube à professora da FFLCH Maria de Fátima Bianchi, que também orientou Diana.
Os cinco contos recém-traduzidos, escritos entre 1962 e 1973, dão testemunho das predileções temáticas de Chukchin. “Os personagens, em sua maioria, são pessoas comuns, camponeses e idosos que enfrentam as dificuldades e os prazeres do seu tempo, como a burocracia soviética e as descobertas científicas”, explicou Diana em entrevista para o podcast Novos Cientistas, do Jornal da USP.
Chukchin, ele mesmo vindo do campo, desenvolveu sua breve carreira – apenas 16 anos de atividades artísticas – em uma União Soviética pós-Stálin, na qual as exigências do realismo socialista já haviam sido (um pouco) abrandadas. O herói positivo, que encarnaria o ideal de humanidade na construção do socialismo, passava a receber críticas pesadas justamente por sua falta de humanidade. Os críticos literários e o público pediam identidade e profundidade nas personagens.
Muitos autores foram buscar inspiração no campo e em seus habitantes. A esterilidade do realismo socialista era combatida com o povo simples, tradicional e puro de uma Rússia antiga que se perdia. Indo dos anos 1950 ao final dos 1970, a prosa rural foi um dos movimentos mais relevantes da literatura soviética.
A presença recorrente de personagens oriundos do campo facilmente remete Chukchin ao grupo dos prosadores rurais, como críticos internacionais demonstram. Diana, contudo, percebe traços específicos no escritor que diferenciam seu trabalho e tornam sua associação com o grupo complicada.
“A figuração do herói consciente, que age em prol de um bem maior, portador dos ideais do Partido, não é o tipo heroico visto nos contos de Chukchin e de muitos outros escritores de sua época, porém tampouco é visto em sua obra o camponês dotado da sabedoria popular, das tradições folclóricas, do olhar saudosista ao passado, como pode ser identificado na prosa rural contemporânea ao escritor”, escreve a pesquisadora em sua dissertação.
De acordo com Diana, a aldeia não é objeto de contemplação na obra de Chukchin, mas o pano de fundo para as histórias. O autor também não idealiza suas personagens, sejam elas camponesas ou citadinas. Ao contrário, os retratos de Chukchin são carregados de ironia e humor: em vez de grandes feitos, pequenos defeitos.
Esses personagens compõem um tipo que Diana identifica como o excêntrico, o esquisito (tchudik, em russo), um herói que age de maneira não convencional e, muitas vezes, incompreensível. Um tipo que carrega algumas virtudes, como bondade, dedicação ao trabalho e humanismo, mas que está longe de parecer um exemplo para o leitor.
Para trazer à vida essas personagens excêntricas – ao lado de outros tipos menos frequentes, como o velho, o iletrado e o presidiário –, a linguagem da qual se vale Chukchin é determinante. Um sabor coloquial a aproxima desses heróis desajustados e expressa simpatia por eles e seus pequenos dramas: entonações, trejeitos e reelaborações da ordem sintática dão voz às personagens e trazem às páginas a Sibéria natal do autor.
Uma mostra dessa prosa e desses excêntricos já podia ser vista em Dá-lhe, Coração! e agora mais outras surgem no conjunto traduzido por Diana: Moradores do Campo (Selskie Jiteli), de 1962, O Esquisitão (Tchudik), de 1967, Conterrâneos (Zemliaki), de 1968, O Microscópio (Mikroskop), de 1969, e Colocou no Devido Lugar (Spezal), de 1970.
Da Sibéria ao Prêmio Lênin
Chukchin nasceu na remota aldeia de Sróstki, no território siberiano de Altai, em 25 de julho de 1929. Era o tempo da União Soviética sob o pulso de Stálin e não demorou muito para que seu pai fosse executado como contrarrevolucionário, em 1933, uma pena revista apenas 23 anos depois, já nos anos de Nikita Khrushchov, quando o tribunal russo decidiria não haver provas suficientes para a acusação. Em 1942, a Segunda Guerra Mundial se encarregou de levar também seu padrasto, morto na linha de batalha, fazendo a infância de Chukchin ser escrita com as tintas da perda e da dificuldade.
Até mergulhar nas artes, Chukchin ziguezagueou por toda sorte de empregos e ocupações que um jovem soviético com ambições para além do vilarejo poderia ter. Estudou em uma escola técnica e desistiu do curso para ingressar em um kolkhoz – uma das fazendas coletivas do regime soviético. Daí passou para o trabalho em estradas de ferro e na construção civil, terminando em 1949 com uma convocação para a Marinha, o que o levou à operação de rádios na Frota Báltica do Mar Negro. Uma úlcera o tiraria das Forças Armadas e o arremessaria de volta para sua aldeia em 1953, onde se tornou professor de Língua Russa e Literatura em uma escola rural noturna para jovens, da qual chegou a se tornar diretor entre 1953 e 1954.
O pulo decisivo na trajetória de Chukchin acontece em 1954, quando vai para Moscou e ingressa no Instituto Estatal de Cinema para estudar direção, formando-se em 1960. Lá é aluno de Mikhail Romm e Sergei Gerásimov e atua no trabalho de conclusão de curso de ninguém menos que Andrei Tarkovski.
É também em Moscou que seu primeiro conto é publicado, em 1958, na revista Smena. Sua primeira coletânea, Moradores do Campo (Selskie Jiteli), vem em 1963 pela Editora Molodaia Gvardia.
A partir daí, Chukchin coordena as atividades de escritor, diretor e ator, muitas vezes adaptando seus textos para o cinema. Com seu primeiro longa-metragem como diretor e cenarista, Jiviot Takoi Paren’, ganha o prêmio de melhor filme no Festival de Cinema da União Soviética e também o Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 1964. Por Vach Cyn i Brat, produção de 1967, ganha os prêmios de melhor direção e cenário no Prêmio Estatal Irmãos Vassilievki, da União Soviética.
Seu principal filme viria em 1974 e também seria seu último, Kalina Krasnaia, cujo roteiro o próprio autor adaptou de seu livro homônimo. Dirigindo e protagonizando, Chukchin conta a história de um ex-criminoso em busca de regeneração em uma fazenda coletiva. Pela obra, uma das maiores bilheterias da história do cinema russo, recebeu o prêmio principal do Festival de Cinema da União Soviética.
Chukchin morreria de ataque cardíaco no dia 2 de outubro daquele mesmo ano, em Kletskii, Volgogrado, enquanto rodava seu filme Oni Srazhalis za Rodinu. Tinha 45 anos. Em vida, lançou oito livros, incluindo romances, novelas e contos, além de uma produção vasta, publicada em periódicos, que inclui contos, peças teatrais, novelas e artigos. Em 1976, seria agraciado com um Prêmio Lênin póstumo, uma das maiores honrarias do mundo soviético.
Sua obra, principalmente os contos, já recebeu traduções para o inglês, espanhol, italiano, alemão, francês, sérvio, polonês, tcheco, vietnamita, japonês e árabe. Diana ainda não tem planos para a publicação dos cinco contos no formato livro, mas espera disponibilizá-los em periódicos científicos. Tomara que o obscurantismo crescente não impeça a chegada desses e de outros trabalhos de Chukchin às prateleiras de nossas livrarias e bibliotecas.