A literatura infantojuvenil: entre o ataque exagerado e a defesa inquestionável

Encontro na Academia Paulista de Letras reúne escritores e professores para debater a censura a livros para crianças e adolescentes

 17/05/2024 - Publicado há 7 meses     Atualizado: 23/05/2024 às 13:40

Texto: Marcello Rollemberg

Arte: Beatriz Haddad*

A escritora Ana Maria Machado durante o evento na Academia Paulista de Letras - Foto: Marcos Santos

Com reportagem de Ricardo Thomé

O poeta romântico alemão Heinrich Heine (1797-1856) certa vez afirmou: “Onde livros são queimados, seres humanos estão destinados a serem queimados também”. E, realística ou metaforicamente, livros e pessoas foram queimados ao longo dos séculos – e em várias latitudes –, antes e depois da frase de Heine. Ideias, palavras e expressões mal compreendidas ou incômodas para a moral de cada época – tudo sempre foi motivo para livros e autores serem emparedados ou incinerados. E em pleno século 21 essa tendência parece não ter arrefecido. Não se queimam mais livros. Mas a perseguição, a censura – muitas vezes velada, outras nem tanto – permanecem. Seja na explicitude de um livro retirado de circulação ou de alguma biblioteca, seja no fogo metafórico do “cancelamento” – esta incômoda prática que parece nova, mas não é. Muito tem se falado na censura ou na tentativa de censurar livros ditos “adultos”. Mas, e a literatura infantojuvenil, aquela responsável pela formação de leitores melhores – mais até, cidadãos melhores? Foi pensando nesse crivo que a literatura voltada para crianças e adolescentes tem sofrido que a Academia Paulista de Letras reuniu, no último dia 9, vários autores, editores e pessoas ligadas ao livro das mais diversas formas para discutir, durante um dia inteiro, a censura a esse tipo de literatura.

“Esse encontro se deveu a uma espécie de grande demanda de autores, editores, professores e pais sobre essa questão, que não está sendo tratada pela grande imprensa”, afirmou, ao Jornal da USP, a historiadora e ex-professora da USP Mary Del Priore, uma das idealizadoras do evento na APL, justamente intitulado Censura e Literatura Infantojuvenil. “Só se enfoca a censura a livros adultos, mas não se trata do tema da literatura infantojuvenil, o que tem preocupado um conjunto de pessoas responsáveis pela formação de jovens leitores. Leitores que a gente quer multiplicar”, ressaltou ela, que é ocupante da cadeira 39 da Academia Paulista de Letras.

O encontro reuniu nomes como os escritores Pedro Bandeira, Ana Maria Machado e Ilan Brenman, a professora Marisa Lajolo – especialista em Monteiro Lobato, o mais recente questionado autor de literatura infantojuvenil – e o quadrinista Maurício de Sousa. Os debates foram divididos em mesas, cujos temas foram A Importância do Professor Leitor, Lobato para Crianças: Censura, Apagamento, Cancelamento e Rasura, A Censura e a Literatura Infantojuvenil e O Prazer de Ler Nossa Literatura Infantojuvenil.  “O objetivo do nosso evento é mostrar o absurdo que é a censura da literatura infanto-juvenil, porque se a censurarem, depois vão acabar censurando a Bíblia”, afirmou, em sua fala de abertura, o presidente da APL, Antônio Penteado Mendonça. “A hora em que se chega a uma situação como essa, a estupidez tomou conta do mundo. E nós não podemos admitir que isso aconteça”, continuou ele, em uma fala forte na qual, inclusive, citou ataques à própria Academia quando Maurício de Sousa foi eleito para a cadeira número 24, em 2011. “Me perguntaram se a eleição não diminuiria a Academia por ele ser autor de livros infantis. E respondi, perguntando se quem questionou começou lendo Kant”, revelou o presidente da ABL. “Tudo começa no começo, ninguém começa lendo livros difíceis.”

Encontro na Academia Paulista de Letras reuniu escritores, editores e outros profissionais ligados ao livro - Foto: Marcos Santos
Encontro na Academia Paulista de Letras reuniu escritores, editores e outros profissionais ligados ao livro - Foto: Marcos Santos

Tia Anastácia e Tom Sawyer

A questão da censura a livros infantojuvenis no Brasil e no exterior, inclusive alcançando autores que fazem parte do cânone do gênero, foi amplamente abordada pela escritora Ana Maria Machado e pela professora Marisa Lajolo na mesa A importância do professor leitor. Ana Maria Machado, cadeira número 1 da Academia Brasileira de Letras, leu um extenso texto apresentando um histórico da valorização e consolidação da literatura infantojuvenil no Brasil ao longo das últimas cinco décadas, ressaltando que “a literatura infantil sempre esteve sujeita a mecanismos de controle, sanções e regulação, como proteção da infância, por parte da família, da educação institucionalizada. Mas ela é, também, envolta em afeto, no desejo de compartilhar o belo, o divertido, o agradável.”

Segundo a autora de Menina bonita do laço de fita, no entanto, até o final dos anos 1990 “ninguém falava em censura na literatura infantil, eram dois conceitos que não se aproximavam”. “Nos últimos anos, contudo, esse quadro vem mudando, com ameaças a autores e editores”, relatou ela, contando que muitos editores se queixam que não se pode mais falar de bruxas, fadas, gênios e magos sob a acusação de “satanismo”. “Assim fica difícil que se leia Sylvia Orthof, Marina Colasanti e Pedro Bandeira, para falarmos de clássicos absolutos”, ressaltou. “Diferentemente da censura tradicional, agora ela não emana de uma determinação superior. Hoje, a censura é lateral, vem de todos os lados, com cancelamentos, proibição, pressões e ataques pessoais”, afirmou ela, relatando a pressão que os próprios professores sofrem. “Torço para que o caminho da educação não se reduza a apenas evitar mencionar a existência de tais ideias ou proibir livros. Deve haver discussão, refutação. Livro não só para entender e concordar, mas para fazer pensar e debater.”

Mary Del Priore  - Foto: Reprodução YouTube
Mary Del Priore - Foto: Reprodução YouTube

Para a escritora, esse problema da censura a livros e ideias não se restringe ao Brasil. Ela relembrou que nos Estados Unidos a tentativa – muitas vezes com êxito – de censura a livros infantojuvenis tem unido radicais à esquerda e à direita. “O regime de censura se espalhou silenciosamente entre os editores educacionais em resposta a grupos de pressão, tanto da direita quanto da esquerda”, afirmou Ana Maria, apontando a consequente restrição do que os alunos aprendem, como os livros didáticos e paradidáticos foram afetados e como, cada vez menos, há variedade de pontos de vista – isso, em uma sociedade que se orgulha de ser democrática.

Trata-se, na verdade, daquilo que os americanos têm chamado de “polícia da linguagem”, um conceito que tem tristemente se alastrado mundo afora. Esse conceito está justamente exposto no livro The language police: how pressure groups restrict what students learn (Polícia da linguagem: como grupos de pressão restringem o que os estudantes aprendem, em tradução literal), de Diane Ravitch, e foi citado por Ana Maria Machado. “Importamos também essa moda, e ao final, ela se alastrou”, afirmou.

Dentro desse contexto, nem autores clássicos escapam, daqueles que tinham sua leitura como obrigatória até certo tempo atrás. Mark Twain, por exemplo. “Ele não vem sendo mais lido nas escolas, pelo uso da palavra nigga, considerada depreciativa ou ofensiva para os afro-americanos”, contou Ana Maria Machado. “Não importa que seus personagens fossem rebeldes, amantes da liberdade, lutadores pela justiça e um deles chegasse a ir contra toda a moral da época ao ajudar um escravizado a fugir de seu dono. Em vez de celebrar esse menino que vai contra as leis escravocratas, os melindres semânticos preferem se arrepiar diante do sentido atual de uma palavra que não tinha esse sentido na época, impedindo que as crianças americanas conheçam personagens como Huckleberry Finn e Tom Sawyer”, afirmou.
Mark Twain - Foto: AF Bradley, Nova York/Wikimedia Commons
Mark Twain - Foto: AF Bradley, Nova York/Wikimedia Commons
Desenho do personagem Huckleberry Finn - EW Kemble
Desenho do personagem Tom Sawyer - Truman W. Williams

Censura e cancelamento ao norte do Rio Grande, censura e cancelamento em terras tropicais. Se Mark Twain foi banido de muitas escolas americanas, por aqui quem sofre as agruras da perseguição é Monteiro Lobato. As obras do criador de Narizinho, Pedrinho e Emília têm sofrido ataques e censuras extemporâneas, justamente pela forma – vista por alguns como “racista” – como a afrodescendente Tia Anastácia era tratada em suas histórias. Como lembrou bem Antônio Penteado Mendonça, presidente da APL, “só se pode ler de forma contextualizada”, e é isso o que tem faltado nos últimos tempos – contexto.

Mas não foi só a forma de tratar Tia Anastácia que acabou por evocar olhares de esguelha e ataques figadais a Lobato. Nem necessariamente é coisa recente. Como lembrou Marisa Lajolo, a versão de Peter Pan narrada por Dona Benta e publicada em 1930 foi proibida em 1941 pela Secretaria de Educação, por ter palavras e expressões “inconvenientes”. Dois anos antes, em 1939, Alice no país da gramática foi censurado. Ou seja, de várias maneiras, Lobato sempre esteve na alça de mira de censores ou questionadores. E nos últimos tempos não tem sido diferente – apenas os questionamentos e as ameaças de cancelamento se pautam em outras premissas, esgarçando o conceito de “politicamente correto” para além do que o bom senso aconselha e as redes sociais apontam. Mas Marisa Lajolo encontra luz onde parece haver um terreno amplamente sombreado. “Sugiro que os escritores de literatura infantil se pautem em algo que Monteiro Lobato fazia muito bem: usar outra voz, como Dona Benta contando a história de Peter Pan, na mediação, criando e sugerindo um envolvimento das crianças”, aconselhou ela. “Além do mais, acho que é possível trabalhar a literatura infantil de Monteiro Lobato exatamente como produção cultural de alta qualidade e é uma boa forma de discutir nas escolas o preconceito e o racismo histórico na sociedade brasileira. Lobato não pode ser banido das bibliotecas escolares.”

Monteiro Lobato - Foto: Wikimedia Commons-Domínio público
Monteiro Lobato - Foto: Wikimedia Commons-Domínio público
Capa do livro "Peter Pan", de Monteiro Lobato - Imagem: Site/Prefeitura de Taubaté
Capa do livro "Peter Pan", de Monteiro Lobato - Imagem: Site/Prefeitura de Taubaté
Pintura de Tia Nastácia - Imagem: Site/Prefeitura de Taubaté
Pintura de Tia Nastácia - Imagem: Site/Prefeitura de Taubaté

O leitor como alvo

Na parte da tarde do encontro na APL, a discussão continuou acalorada na mesa que deu nome ao evento – A Censura e a Literatura Infantojuvenil, com mediação da historiadora Mary Del Priore. Principalmente porque um dos debatedores, Pedro Bandeira, sentiu na pele o hálito acre da censura. “Certa vez, uma professora quis devolver um livro meu devido à presença da palavra ‘calcinha’. Então, respondi: ‘Mas a senhora não usa?’”, contou Bandeira. “Houve outra vez em que recebi uma carta de uma jovem que, ao ser vista lendo A Droga da Obediência, foi agredida pela mãe e teve o livro queimado”, revelou ele ao Jornal da USP. Em mais uma oportunidade, o escritor viu um de seus livros ser motivo de um boletim de ocorrência na Polícia porque falava de “menstruação”.

Estes são apenas rápidos exemplos de como a censura, a má compreensão da finalidade do livro infantojuvenil e mesmo uma certa moralidade questionável acabam obstaculizando um maior acesso aos livros por parte de crianças e adolescentes. “Minha preocupação é abordar aspectos que se relacionam às fases pelas quais as crianças e jovens estão passando, como puberdade e autoestima, corpo, sexualidade”, afirmou Pedro Bandeira. “Na literatura infantil, a criança depende de outra pessoa para ter acesso à literatura. E aqui no Brasil, ou o professor indica, ou a criança nunca vai ler – uma função de introdução que deveria ser da família e que na maior parte das vezes não é. A criança chega zerada, e a professora acaba tendo que assumir esse papel, em vez de cumprir o papel de complemento”, avaliou o autor de O fantástico mistério de Feiurinha. “Na escola, aquele que tem dificuldade tem que ser ajudado e deve ser a prioridade do professor, porque ele é quem mais precisa de auxílio. Minha esperança é mudar a cultura da família brasileira”, afirmou ele, ainda ressaltando: “Meu alvo é o leitor. Eu escrevo como é na realidade. Se eu recusar essas características, relacionadas ao desenvolvimento social, à vida sexual, ele não vai se identificar. Não posso dizer ‘não’ a ele.”
Pedro Bandeira - Foto: Reprodução/Youtube
Pedro Bandeira - Foto: Reprodução/Youtube

Quem foi nesse mesmo diapasão foi Ilan Brenman, autor de dezenas de livros infantojuvenis, entre eles Histórias para pai dormir e A condenação de Emília: o politicamente correto na literatura infantil. “Quanto mais se retiram os conteúdos que trazem personalidade aos livros, mais desesperadas ficam as crianças”, garantiu ele.

Talvez uma das melhores definições para tudo o que foi discutido por um dia inteiro na APL – um encontro que ainda teve rápidas participações de Maurício de Sousa e Daniel Munduruku, “um representante da comunidade indígena, tantas vezes deixada de escanteio”, como ele mesmo referiu – tenha sido dada pelo próprio Brenman, que também resume o papel essencial da literatura infantojuvenil. “A criança precisa encontrar o sentido da vida, entender por que está aqui — e como vai entender se não proporcionarmos palavras que norteiem isso para ela?”, questionou.

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


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