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Reforma urbana: pesquisa aponta avanços e contradições em políticas habitacionais no Brasil
Estudo analisou ações estatais em Fortaleza (CE), identificando ganhos e limites, e trazendo elementos para repensar a agenda das políticas de habitação
Imagem aérea de Fortaleza, no Ceará. Foto: Rérisson Máximo
As duas primeiras décadas do século 21 foram marcadas por uma conjuntura favorável às lutas pela Reforma Urbana no Brasil, momento que pode ser denominado “Ciclo Institucional de Reforma Urbana”, e que levou a uma nova dinâmica quanto às demandas de questões urbanas e habitacionais no País. Mesmo assim, houve contradições e limitações na implementação de programas e políticas desse período.
Utilizando como recorte espacial e campo de investigação Fortaleza, no Ceará, uma pesquisa da USP confirma a presença desse ciclo histórico no Brasil, apontando avanços e desigualdades na implementação de políticas urbanas e habitacionais na construção em massa de moradias para a população de baixa renda; em obras de urbanização no rio Maranguapinho que removeram grande quantidade de famílias da região; e nas lutas pela garantia de permanência da comunidade urbana do Serviluz, ocupação formada na segunda metade do século 20, situada do Cais do Porto ao Vicente Pinzón.
“A reforma urbana vai além da construção de habitação para a população de baixa renda; trata-se de um conjunto de ideias e práticas que buscam intervir nas cidades, garantindo moradia digna, uso justo da terra urbana e acesso a equipamentos e serviços urbanos essenciais para todos e todas que moram nas cidades”, define o arquiteto e urbanista Rérisson Máximo. Ele é autor da tese Entre o necessário, o possível e o impossível: (des)caminhos da habitação em Fortaleza no ciclo institucional da reforma urbana, defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) USP, sob orientação da professora Luciana de Oliveira Royer, que coordena o Laboratório Habitação e Assentamentos Humanos da FAU.
Segundo o urbanista, embora o movimento por uma reforma urbana tenha raízes nas reformas estruturais propostas pelo governo de João Goulart, na década de 1960, o movimento passou por várias fases e ganhou uma nova dinâmica com a promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, e a criação do Ministério das Cidades no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2003, quando relevantes avanços no campo das políticas urbanas e habitacionais se consolidaram ou mesmo se constituíram, apesar das inúmeras contradições que esse processo apresentou.
Arquiteto e urbanista Rérisson Máximo, autor da pesquisa - Foto: Arquivo pessoal
Convergência de ideias, sujeitos e políticas
Segundo a pesquisa, o conceito de “Ciclo Institucional de Reforma Urbana” é derivado de ideias formuladas pela professora e urbanista Ermínia Maricato, fundadora do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da USP e conhecida por sua atuação na luta pela Reforma Urbana no Brasil. A professora desempenhou papéis importantes na administração pública, incluindo sua participação no Ministério das Cidades.
Segundo Rérisson Máximo, o Ciclo Institucional de Reforma Urbana coincidiu com a governança progressista do Brasil, especialmente durante a administração do Partido dos Trabalhadores, refletindo a experiência brasileira no contexto dos governos progressistas latino-americanos. O pesquisador identificou três movimentos principais nesse ciclo: ideias, sujeitos e políticas. O de “ideias” envolveu a disseminação de conceitos urbanísticos pelo território nacional. O de “sujeitos” se referiu à incorporação pelo Estado de sujeitos vinculados aos movimentos sociais urbanos que conduziram ideias, experiências e práticas no interior do aparelho estatal. E o de “políticas” abrangeu a criação e implementação de políticas urbanas e habitacionais, além de sua expansão para outros níveis federativos.
Programa “Minha Casa, Minha Vida"
Conjunto habitacional Cidade Jardim, construído com recursos “Minha Casa, Minha Vida” - Foto: Rérisson Máximo
“Tem, mas tá faltando” dito popular utilizado nas periferias urbanas e no interior do Nordeste, ilustra, para o arquiteto, as contradições das políticas habitacionais em Fortaleza. Ele aponta que a cidade recebeu verbas substanciais do programa “Minha Casa, Minha Vida”, importante ação do Governo Federal, durante o chamado Ciclo Institucional da Reforma Urbana. Porém, o conjunto habitacional estudado em sua pesquisa, o Cidade Jardim – com cerca de 11 mil unidades habitacionais – foi construído na periferia da cidade, sem a atenção à infraestrutura de transporte, segurança, comércio e lazer.
O urbanista destaca que o programa “Minha Casa, Minha Vida” entregou mais unidades habitacionais em uma década do que o Banco Nacional de Habitação (BNH) durante os 21 anos do regime militar (1964-1985). No entanto, ele critica o fato de que o programa repete alguns erros do passado, ao concentrar a população de baixa renda na periferia das cidades.
Segundo o estudo, entre 2009 e 2020, o Minha Casa Minha Vida contratou mais de seis milhões de unidades habitacionais ao longo do território nacional para diferentes faixas de renda. Em Fortaleza, foram mais de 38 mil moradias construídas por esse programa até 2018, sendo cerca de 28 mil para as famílias incluídas na chamada Faixa 1, aquela que contempla população de menor renda, relata. No entanto, Rérisson Máximo diz que a implementação desse programa em Fortaleza resultou em problemas relacionados à infraestrutura e aos serviços urbanos necessários para que a população beneficiada pudesse ter condições adequadas de moradia.
Zonas Especiais de Interesse Social
Comunidade urbana do Serviluz, faixa litorânea de Fortaleza, beneficiada com proteção com sua inclusão nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS)” - Foto: Rérisson Máximo
A comunidade urbana do Serviluz, localizada na faixa litorânea de Fortaleza, ganhou uma nova camada de proteção com sua inclusão nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), instrumento previsto no Estatuto da Cidade que permite a demarcação de áreas destinadas a habitações para a população de baixa renda. Segundo o pesquisador, essa medida contribuiu para a luta de permanência daquela população na região, pois governos estaduais e municipais por diversas vezes tentaram remover os moradores da área diante do seu grande potencial paisagístico e turístico.
A promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, na instância federal, obrigou muitos municípios, incluindo Fortaleza, a revisar e elaborar seus planos diretores. Durante a gestão de Luizianne Lins na prefeitura de Fortaleza (2005-2012), os movimentos sociais, especialmente os que lutavam por reforma urbana, estiveram diante de uma conjuntura sociopolítica que caracteriza o Ciclo Institucional da Reforma Urbana e que possibilitou a inclusão do Serviluz como Zona Especial de Interesse Social (ZEIS).
O estudo aponta que a demarcação da área enquanto ZEIS trouxe uma dupla condição que ampliou as possibilidades de permanência no local. Primeiro, sob o aspecto da participação social, na medida em que a mobilização ganhou novas dinâmicas no processo de elaboração do plano diretor, quando sujeitos ligados ao campo popular identificaram e mapearam vazios e territórios precarizados e, pela primeira vez, foi incluído esse tipo de zoneamento na legislação urbana para a capital cearense. Segundo, sob o aspecto jurídico, a própria condição do local estar delimitado como zoneamento especial tem permitido acionar instâncias jurídicas quando projetos de intervenção urbana ameaçam remover total ou parcialmente moradias daquele território.
Segundo o pesquisador, apesar de a comunidade Serviluz ter sido designada como Zona Especial de Interesse Social pela legislação urbanística de Fortaleza, o reconhecimento legal não garantiu, por si só, a melhoria das condições de vida dos residentes da área, que era um dos objetivos da medida, como relata um depoimento colhido para a pesquisa:
... As ZEIS, como muitas outras instâncias dessa sociedade, elas se tornam também uma coisa falsa, né, uma coisa só de aparência que a gente debate, discute… A ZEIS Serviluz já está regulamentada, mas as obras que nós tivemos aqui, como areninha, que foi na ZEIS Serviluz, poderia ser debatida nesse conselho, mas não foi. É também a questão da escola, da creche, nenhuma é debatida… Teoricamente era para passar por debate. E não passaram, foram à revelia….
(Fernandes, 2002)
Programa de Aceleração do Crescimento – PAC
Obras de controle das cheias do rio Maranguapinho e recuperação ambiental das faixas de preservação, obras de infraestrutura de saneamento e habitação para famílias ribeirinhas pelo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) - Foto: Rérisson Máximo
A partir de 2009, com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na modalidade Urbanização de Assentamentos Precários (UAP), o Governo Federal destinou cerca de meio bilhão de reais para obras de controle das cheias do rio e a recuperação ambiental das faixas de preservação, além de obras de infraestrutura de saneamento e de habitação para as famílias ribeirinhas das áreas adjacentes. O projeto previu a construção de mais de sete mil moradias para realocação da população removida das margens do rio Maranguapinho. Algumas foram construídas em bairros próximos, porém, outros empreendimentos habitacionais utilizados para reassentamento da população removida estão localizados fora da bacia hidrográfica daquele rio, em bairros periféricos de Fortaleza.
Como contraponto, Rerisson aponta que “mesmo existindo diversos vazios urbanos no entorno das áreas impactadas pelo projeto Rio Maranguapinho, os conjuntos habitacionais foram construídos em terrenos distantes dos assentamentos precários removidos”, diz.
Repensar a agenda
Professora Luciana de Oliveira Royer, coordenadora do Laboratório Habitação e Assentamentos Humanos da FAU-USP - Foto: Arquivo pessoal
*Estagiário sob supervisão de Moisés Dorado
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