Livro organizado pela OMS traz discussão sobre ética nos ensaios clínicos da vacina contra a covid

Pesquisadores da Escola de Enfermagem da USP escreveram um capítulo da publicação; texto trata do não fornecimento imediato da vacina de covid-19 aos participantes do estudo clínico, devido ao confisco do imunizante pelo Governo Federal

 20/06/2024 - Publicado há 6 meses     Atualizado: 24/06/2024 às 19:19

Texto: Ivanir Ferreira

Arte: Simone Gomes

A publicação reúne casos de pesquisadores de uma rede mundial de mais de 100 países, que tratam dos desafios éticos e práticos relacionados à investigação em saúde pandêmica. Capa do livro: Divulgação

Pesquisadores da Escola de Enfermagem (EE) da USP participaram da elaboração do livro Ética em pesquisas em epidemias e pandemias: um livro de casos, de acesso aberto, organizado pela Rede Internacional de Pesquisadores Epidemics Ethics – Centro Colaborador para Bioética da Organização Mundial da Saúde (OMS). A publicação reúne casos e comentários de pesquisadores de uma rede mundial de mais de 100 países, que tratam dos desafios éticos e práticos relacionados à investigação em saúde pandêmica. O material está disponível gratuitamente no site do casebook.

O capítulo destinado aos pesquisadores brasileiros foi o Caso 9.5: Ensaios Clínicos COVID-19: Participantes do Grupo Placebo e o Direito de Acesso ao Produto Experimental . “O texto trata da problemática do não fornecimento imediato da vacina de covid-19 aos participantes do estudo clínico, devido ao confisco do imunizante feito pelo Governo Federal de Jair Bolsonaro, em dezembro de 2020”, relata Rafael Rodrigo da Silva Pimentel, um dos autores do capítulo, doutorando da EE e professor da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein. Os outros dois autores foram o professor Marcelo José dos Santos (orientador) e Edson Silva dos Santos,  ambos da EE.

Pimentel lembra que logo após a realização das pesquisas de ensaios clínicos que demonstraram a eficácia das vacinas experimentais, o Governo Federal estabeleceu um plano nacional de imunização contra a covid e solicitou que todas as doses fossem disponibilizadas para imunização do grupo prioritário na fase inicial da campanha, o que impactou na capacidade das instituições que faziam as pesquisas em oferecer as vacinas aos voluntários do grupo placebo.

O pesquisador explica que as etapas de desenvolvimento de uma vacina são bem complexas: a primeira corresponde à pesquisa básica, onde são identificadas novas propostas de vacinas; na segunda, são feitos testes pré-clínicos (in vitro, com células, e ou in vivo, em animais) para demonstrar a segurança e o potencial do imunizante de provocar resposta imunológica no organismo; e na terceira etapa, acontecem os ensaios clínicos, a mais longa e mais cara fase da pesquisa, onde são testadas a eficácia da vacina para obtenção do registro sanitário e posterior disponibilização à população.

Rafael Rodrigo da Silva Pimentel - Foto: Arquivo Pessoal

O texto tratou de questões éticas envolvidas na última fase de estudos clínicos, no qual se discutiu “a importância de se fornecer ao grupo controle que recebeu apenas placebo (substâncias sem propriedades farmacológicas) o direito de ser imunizado com a vacina que estava sendo avaliada e testada, que na ocasião estava sendo administrada apenas ao grupo experimental (que recebia a intervenção). “Estávamos em plena pandemia e era essencial que os voluntários do grupo que receberam apenas placebo também fossem imunizados para protegê-los contra a covid-19 e para a redução da propagação do vírus”, diz.

“Felizmente, mesmo com o confisco, os voluntários que participaram do estudo do grupo que receberam apenas placebo foram imunizados duas semanas depois de resolvido a problemática do confisco”, diz o pesquisador.

Questionamentos éticos

Para Pimentel, a experiência vivenciada pelos pesquisadores suscitou questionamentos éticos que foram compartilhados no livro: os participantes dos grupos controle dos estudos deveriam ser priorizados para receber a vacina em detrimento de outros grupos prioritários? Uma vez demonstrada que as vacinas eram eficazes e seguras, os participantes deveriam ser informados sobre qual grupo eles pertenciam (o que recebeu a vacina e o que recebeu apenas placebo)? E, por fim, os critérios de inclusão e exclusão nestes estudos são apropriados e justificáveis em um contexto de pandemia?

Segundo o professor Santos, respostas a esses questionamentos podem ser fundamentadas na Lei de número 14.874, de 28 de maio de 2024, que dispõe sobre pesquisas com seres humanos e instituiu um Sistema Nacional de Ética em Pesquisas com seres humanos. A lei foi sancionada pelo presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva e se  baseia em princípios éticos da autonomia, na beneficência, não maleficência e justiça. O capítulo 6 trata da continuidade do tratamento após o ensaio clínico, aspectos que visam a proteção dos participantes da pesquisa e de seus direitos diante de casos como o apresentado no livro.

O livro da OMS  é destinado ao público acadêmico e aos profissionais com interesse em ética em pesquisa, epidemias e pandemias e saúde global. Os tópicos abordados incluem questões que surgem ao priorizar e des-priorizar a pesquisa; adaptação de pesquisas e procedimentos de pesquisa; acelerar os processos de revisão ética e regulamentar; relatar resultados de pesquisas e compartilhar dados; e reconhecer e respeitar os direitos e interesses dos participantes na investigação, das comunidades e dos públicos em contextos pandémicos em rápida evolução.

Mais informações com os pesquisadores: Marcelo José dos Santos, email mjosan1975@usp.br e Rafael Rodrigo da Silva Pimentel, email rafaelpimentel@usp.br


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