Diálogo entre embriologia e genética promoveu avanços no estudo da evolução

Pesquisadores tentaram esclarecer o papel dos genes no desenvolvimento antes da descoberta da estrutura do DNA, em 1953, superando diferenças teóricas e de método entre os campos da biologia

 08/08/2024 - Publicado há 3 meses     Atualizado: 12/08/2024 às 5:50

Texto: Júlio Bernardes

Arte: Joyce Tenório*

Áreas de pesquisa surgidas independentemente no fim do século 19 e início do século 20, embriologia investiga processos celulares e genética busca explicar transmissão de características hereditárias; nesse período, elas ainda não dialogavam entre si – Fotomontagem de Jornal da USP com imagens de Jerome Walker/Wikimedia Commons, Lester George Barth/
Internet Archive Book Images via Flickr
e NinaSes/Wikimedia Commons

Na primeira metade do século 20, embriologia e genética não andavam juntas nas pesquisas sobre o desenvolvimento e a evolução dos seres vivos. A história de como os cientistas superaram as diferenças teóricas e de método, levando ao surgimento do campo da biologia evolutiva do desenvolvimento (evo-devo) é revelada em pesquisa da USP. O trabalho de Fernanda Arcanjo relata os esforços dos estudiosos em tentar esclarecer o papel dos genes no desenvolvimento antes da descoberta da estrutura do DNA, em 1953. As conclusões do estudo foram apresentadas em tese de doutorado defendida na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) este ano.

A pesquisa investigou se duas ideias muito presentes no meio científico a respeito da história da genética e da evolução tinham fundamento factual, uma delas envolvendo o geneticista Thomas Hunt Morgan (1866-1945), um dos pioneiros em estudos genéticos, com o uso de moscas. “Supostamente por causa dele, teria se estabelecido uma separação entre o estudo da herança, que seria apenas de domínio da genética, e do desenvolvimento, exclusivo da embriologia”, relata Fernanda Arcanjo. “A outra ideia é de que o estudo da embriologia teria sido excluído da ‘síntese moderna’, um movimento ocorrido principalmente entre as décadas de 1930 e 1940, liderado por evolucionistas e geneticistas, que promoveu a compatibilização entre a genética e os principais aspectos da teoria evolutiva darwiniana.”

De acordo com a pesquisadora, a embriologia experimental e a genética são duas áreas de pesquisa que surgiram independentemente no final do século 19 e início do século 20, ambas com enfoque na experimentação. “Os embriologistas defendiam a importância de se investigar os processos celulares, internos ao organismo, que se davam ao longo do desenvolvimento da vida”, explica. “Eles empreenderam uma série de experimentos com embriões em diferentes estágios do desenvolvimento, mas naquele momento não conseguiram desenvolver uma teoria ampla para fundamentar suas ideias, pois os fenômenos fisiológicos com os quais estavam lidando eram altamente complexos.”

A genética surgiu a partir da redescoberta dos trabalhos de Gregor Mendel (1822-1884) e produziu uma explicação simples e coesa para o fenômeno da transmissão das características hereditárias baseada em experimentos com cruzamentos de plantas e animais, observa Fernanda Arcanjo. “Antes, o estudo da herança e transmissão estava vinculado ao do desenvolvimento, mas era pautado em hipóteses muito especulativas. A genética passou a explicar a transmissão por meio de uma teoria bem fundamentada e de uma metodologia experimental e quantitativa que permitia a previsão de resultados”, relata. “Porém, a teoria mendeliana e, consequentemente, a genética, não conseguia explicar como se dava o desenvolvimento. Assim, se estabeleceu uma separação metodológica entre a genética e a embriologia experimental.”

A pesquisa concluiu que ”não foi Thomas Morgan o ‘culpado’ por tal separação, porque ela estava dada pela própria abordagem mendeliana do problema da herança, ou seja, era intrínseca à ciência da genética”. “Nós mostramos que Morgan, pelo contrário, ao final da sua carreira, se empenhou em produzir uma compatibilização entre genética e embriologia, mas não foi bem-sucedido devido à complexidade e magnitude do empreendimento e às limitações técnicas e teóricas do seu tempo”, explica a pesquisadora.

Desenvolvimento

Fernanda Arcanjo relata que o surgimento do campo da genética de populações inclui os trabalhos de Ronald Fisher (1890-1962), Sewall Wright (1889-1988) e J.B.S. Haldane  (1892-1964), publicados no início da década de 1930, e que tiveram sucesso na compatibilização entre a genética e partes da teoria evolutiva darwiniana. “Entretanto, a genética de populações, baseada na genética clássica, não dizia nada a respeito do desenvolvimento – ela explicava importantes aspectos da evolução, mas estava desconectada da embriologia. Do mesmo modo, a ‘síntese moderna’ se desenvolveu na relação entre a genética de populações e vários outros campos da biologia, como a zoologia, a botânica, a paleontologia, a taxonomia, entre outros, mas não com a embriologia. Daí segue a pergunta: houve, então, uma exclusão?”.

A pesquisadora afirma que antes da genética e da embriologia experimental, herança, desenvolvimento e evolução eram estudados em conjunto. “A genética, no entanto, trouxe uma fundamentação bastante sólida para o estudo da herança e, por isso, muitos investigadores se dedicaram a compatibilizar essa nova teoria para herança com suas ideias sobre evolução, que também eram variadas”, diz. Nesse ponto, Fernanda Arcanjo destaca a contribuição dos cientistas Gavin de Beer (1899-1972), J. B.S. Haldane, Julian Huxley (1887-1975) e Richard Goldschmidt (1878-1958).“Eles nos chamaram a atenção entre os estudiosos do tema por explorarem um problema que chamamos de ‘temporalidade do desenvolvimento’. Em outras palavras, eles investigaram a determinação genética do ‘tempo de expressão’ das características ao longo da ontogenia, ou seja, do desenvolvimento biológico desde a fecundação, e também como variações nesse ‘tempo’ poderia explicar certas relações e padrões evolutivos”.

Os quatro cientistas estiveram envolvidos na “síntese moderna”, especialmente Huxley, biólogo e filósofo britânico, que em 1942 publicou o livro que deu nome ao movimento, “Evolution: the modern synthesis”, e Haldane, também britânico, biólogo e geneticista, um dos principais teóricos da genética de populações. “No entanto, eles se depararam com limitações técnicas e metodológicas para entender como os genes agem no organismo de modo a determinar o desenvolvimento. Afinal, isso tudo foi bem antes da proposição do DNA e da relação entre nucleotídeos e proteínas”, relata a pesquisadora. “Portanto, concluímos que não houve uma exclusão deliberada da embriologia, na verdade houve diversas tentativas de conectar as três áreas com a ‘genética do desenvolvimento’, pouco frutíferas naquele momento, em comparação com os métodos de pesquisa da genética de populações.”

Segundo Fernanda Arcanjo, os obstáculos enfrentados pelos quatro cientistas vieram a ser contornados somente anos mais tarde. “Após a descoberta da estrutura do DNA em 1953 e o desenvolvimento da biologia molecular, muito a respeito da ação dos genes foi compreendido. Como consequência, na década de 1980 se estabeleceu o campo da evo-devo, que está em plena expansão atualmente. Um dos fenômenos que encabeçaram os estudos em evo-devo foi a heterocronia, hoje definida como as variações geneticamente controladas no momento, frequência ou duração da ocorrência de um evento do desenvolvimento em um organismo, em comparação com seus ancestrais ou com outros organismos”, relata. “O termo heterocronia foi cunhado por Gavin de Beer, embriologista britânico, em 1930, numa pesquisa sobre a temporalidade do desenvolvimento, diretamente influenciada pelos trabalhos de Goldschmidt e Huxley”.

Em 1977, o biólogo e paleontólogo britânico Stephen Jay Gould (1941-2002), em seu livro ‘Ontogeny and phylogeny’, partiu das ideias de Beer e de Haldane para discutir a importância do tempo nas relações entre genética, embriologia e evolução. “Essa obra é considerada por muitos o marco inicial da evo-devo”, diz a pesquisadora. “Apesar dos obstáculos no desenvolvimento nas pesquisas, os quatro tiveram um papel importante na elaboração de perguntas e na proposição de caminhos iniciais para investigar as relações entre genes, desenvolvimento e evolução, os quais vem sendo plenamente explorados na atualidade”.

O trabalho de doutorado foi orientado pela professora Lilian Al-Chueyr Pereira Martins, e desenvolvido em parte durante um estágio de doutorado sanduíche na University of Florida (EUA), sob supervisão da professora Vassiliki Betty Smocovitis. A pesquisa foi financiada integralmente pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), com bolsas do programa Proex de Excelência Acadêmica (Proex) e do Programa Institucional de Internacionalização da USP (PrInt/USP).

Mais informações: e-mail fgarcanjo@gmail.com, com Fernanda Arcanjo

*Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado


Política de uso 
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.