Mario Ramiro, que foi integrante do grupo de arte independente 3Nós3, coloca um saco de lixo na cabeça de uma das estátuas do Monumento à Independência, que carrega o simbolismo de ter sido inaugurado em comemoração ao centenário da independência. Foto: 3N3 Ensacamento 1979 / Acervo Mario Ramiro

De ocupar a Praça da Sé a “ensacar” monumentos: como a arte independente interveio em São Paulo durante a ditadura?

Grupos de artistas independentes, como Viajou sem Passaporte, 3Nós3 e D’Magrela, atuaram durante a ditadura militar por meio de intervenções artísticas que buscavam a interação com o público e com os espaços públicos da cidade

 16/09/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 19/09/2022 as 16:11

Autor: Bianca Camatta

Arte: Guilherme Castro

Já imaginou passear pelo bairro do Ipiranga, em São Paulo, e se deparar com o Monumento à Independência “ensacado”? Foi o que aconteceu em plena ditadura, em 1979, na intervenção feita pelo grupo artístico independente 3Nós3. Essa foi uma das ocupações do espaço urbano da cidade de São Paulo durante a ditadura militar (1964-1985) analisadas na pesquisa de doutorado da arquiteta Patrícia Morales Bertucci, na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A tese teve como foco grupos artísticos independentes, como Viajou Sem Passaporte, D’Magrela e 3Nós3, além do Grupo Universitário de Teatro Universitário (GEXTU), que produziam uma arte baseada na experiência e nos aspectos visuais da cidade, o que era uma forma de resistência às censuras da época.

De acordo com o estudo, com essas manifestações artísticas, os grupos se apropriaram da cidade e expandiram a ideia tradicional de arte como forma de representação e contemplação, levando as produções à cidade e incorporando propostas em que o espectador torna-se um participante. Algo bem diferente da maioria das intervenções artísticas atuais que, muitas vezes, se concentram apenas dentro de museus e galerias.

“Tentamos relacionar essas duas questões: como a cidade ia sendo produzida pelo poder público e como os artistas iam interferindo nessa produção, com as intervenções artísticas”, explica Patrícia Bertucci ao Jornal da USP. Segundo ela, a ditadura impôs barreiras ao espaço físico, como reformas que tentavam controlar o uso da cidade pelas pessoas. Um exemplo é a construção do Minhocão, na década de 1970, que, mesmo tendo como objetivo facilitar a circulação entre bairros, retirou várias pessoas de suas casas. A pesquisadora conta que a motivação para a pesquisa partiu do questionamento de como a arte é capaz de sensibilizar as pessoas para que estejam mais atentas à cidade, às pessoas e à relação entre elas.

Patrícia Bertucci - Foto: Arquivo pessoal

Patrícia Morales Bertucci - Foto: Arquivo pessoal

O Evento Fim de Década

Na época, o que prevalecia era o uso do espaço funcional — circulação de pessoas, que se locomoviam para o trabalho e depois para a casa. Essa noção era tão comum na época, que o fato das pessoas se juntarem em grupo no espaço público podia fazer com que fossem abordadas por agentes policiais. “As pessoas eram interrogadas pela polícia, tinham que apresentar a carteira de trabalho e mostrar que estavam indo trabalhar. O cidadão precisava sempre mostrar que era funcional”, diz a pesquisadora. Reuniões de natureza política, inclusive, deveriam ser previamente autorizadas pela autoridade policial, segundo a Constituição de 1967 

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Esse caráter funcional da cidade, que limitava os encontros dos grupos no espaço urbano, foi um dos motivadores para a realização do Evento Fim de Década, que ocorreu em 1979, na Praça da Sé, centro da capital paulista. O evento foi concebido pelo grupo Viajou Sem Passaporte, formado por estudantes da ECA dos cursos de Jornalismo, Música, Teatro e Cinema e autodenominado “grupo da criatividade”, que propunha jogos de criatividade e de uso do corpo. Esses jogos eram baseados na participação dos espectadores e buscavam se desviar da estrutura instrumentalizada da época.

Além deles, também participaram do evento os grupos independentes 3Nós3, D’Magrela e o Grupo Universitário de Teatro Universitário (GEXTU). O 3Nós3 era formado por artistas plásticos da ECA e fez intervenções na cidade entre 1979 e 1982. O D’Magrela era formado por alunos de Jornalismo da ECA e atuou entre 1979 e 1980. Quanto ao GEXTU, ele surgiu entre alunos da Pontifícia Universidade Católica (PUC) e da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) e a ideia era criar um ambiente de aprendizagem em artes cênicas. “O Evento Fim de Década é muito interessante, porque foi feito coletivamente, com vários grupos independentes de artistas”, opina Patrícia.

O evento aconteceu na Praça da Sé, marco zero da cidade, por ser a origem demográfica de São Paulo. “Escolhemos a Praça da Sé, o marco zero da cidade, porque fazer um evento ali significava uma afronta à proibição de não se reunir em praça pública em 1979, ou coisa assim. E era o ponto central da cidade”, contou Marilda Carvalho, integrante do Viajou Sem passaporte, em entrevista à arquiteta.

Além disso, durante a ditadura militar, esse espaço foi utilizado para promover eventos militares. Manifestações eram proibidas no local e ele foi fechado para obras durante a década de 1970, período em que ocorreu a construção da estação Sé da linha azul do Metrô, e reaberto apenas em 1979.

Um dos marcos do evento foi um dragão construído pelos artistas, feito de um pano preto e suportes de PVC. Ele foi carregado pela população, convidada pelos artistas a participar no percurso entre o Teatro Municipal e a Praça da Sé. Isso acabou atraindo um público que foi levado até o evento. O dragão mudou o aspecto funcional do dia a dia da cidade para um estado de festa.

O dragão foi uma das bases do Evento Fim de Década e ajudou a atrair público para a Praça da Sé - Foto: Patrícia Bertucci

Para além do dragão, o evento teve outras bases de ação, atividades que funcionaram como um convite dos artistas para os transeuntes interagirem coletivamente no espaço da praça, o que trouxe um aspecto lúdico à cidade. Por exemplo, o Lambe-Lambe — painel de madeira, com imagens de personagens, ocos na altura do pescoço, onde as pessoas colocavam a cabeça para tirar fotos. Essa estrutura fez com que pessoas desconhecidas ficassem juntas nas fotografias que, depois, foram enviadas, via correios, para suas casas. Patrícia comenta que “o evento foi importante não apenas pelo espaço físico, que a gente pode tocar, mas também pela memória desses acontecimentos. Ou seja, pela lembrança dos lugares em que a gente encontra as pessoas para jogar, brincar”.

Essa ação aconteceu durante o governo João Batista Figueiredo, último presidente militar do período, e, segundo Patrícia, era uma forma dos artistas mostrarem que a ditadura estava chegando ao fim e eles voltariam a ocupar a cidade.

Intervenção urbana e a sociedade

Além do Evento Fim de Década, Patrícia também analisou a ação isolada dos grupos artísticos. Para o seu estudo, a autora consultou documentos históricos e fez entrevistas com os integrantes. “O mais importante foram esses encontros com os artistas. Conversar com eles não só do ponto de vista da tese, mas também do ponto de vista humano”, relata a pesquisadora sobre o que, para ela, foi o mais importante na construção da tese.

O grupo 3Nós3, por exemplo, diferente do Viajou sem Passaporte, buscava uma intervenção que se pautava, principalmente, nos aspectos visuais. Elas eram relatadas nas mídias, pois suas mudanças logo eram desmontadas pela polícia. A imprensa muitas vezes era acionada pelos próprios artistas para registrar seus trabalhos e se blindarem contra a ação policial. Uma das ações de destaque do grupo foi o Ensacamento, quando monumentos da cidade foram “ensacados”, dentre eles o Monumento à Independência. Mas a ação foi vista de forma negativa pela mídia, pois contrariava a disciplina imposta pelos militares.

Hoje em dia existem muitas ações artísticas que são chamadas de intervenções, mas que estão dentro do museu e da galeria. Então, a gente precisa problematizar um pouco isso para mostrar que eram outros tempos.”

Mapa ilustrativo do percurso de 25 quilômetros entre os monumentos “ensacados” baseado nas informações do acervo do grupo: Monumento à Independência, Anhanguera, O Tempo, Monumento às Bandeiras, Escultura Graça I e II, Monumento a Carlos Gomes e Rui Barbosa, Índio Caçador, Cata-vento, O engraxate e o jornaleiro, Giuseppe Verdi, Idílio ou Beijo Eterno, Busto de João Mendes, Busto de John Kennedy, A Menina e o Bezerro, Busto de Afonso Taunay e Mulher Nua - Foto: Patrícia Bertucci

Ensacamento começou pelo Monumento à Independência, que é símbolo da emancipação política brasileira, e terminou na Praça Marechal Deodoro, que leva o nome do primeiro presidente do Brasil, que liderou o golpe que levou à Proclamação da República.

A “estética do lixo” da intervenção contraria a ideologia organizada e higienizada ditatorial. 3Nós3, Ensacamento, 1979 - Foto: Acervo Mario Ramiro

Patrícia ressalta como essas intervenções eram diferentes do que são hoje. “Hoje em dia existem muitas ações artísticas que são chamadas de intervenções, mas que estão dentro do museu e da galeria. Então, a gente precisa problematizar um pouco isso para mostrar que eram outros tempos”, diz Patrícia.

O objetivo principal deles era intervir no cotidiano de São Paulo e não produzir uma obra que, posteriormente, seria vendida. E, a partir da estética criada pelos grupos, há uma construção de linguagem, que afeta o comportamento das pessoas. 

Essa ocupação da cidade, nas palavras da arquiteta, é importante para “a questão da alteridade, da convivência, da interação e troca com pessoas diferentes das que fazem parte do círculo social dos espaços privados e controlados”.

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Para Patrícia, sua pesquisa de doutorado é importante para dar voz aos grupos independentes e mostrar outras formas de uso do espaço. “A cidade é conflito, é diferença, é alteridade, é o lugar da convivência que gera a oportunidade de conhecer o outro que também habita e produz o espaço da cidade”, diz.

Ao fim da tese, a autora ainda disponibiliza a transcrição das entrevistas que fez com os artistas independentes como base para a sua pesquisa. Isso ajuda a mostrar a diversidade entre eles e também possibilita que cada um possa criar a própria interpretação para além daquela difundida na tese. 

A pesquisa Origem e percurso: arte na intervenção e apropriação da cidade de São Paulo pelos grupos de arte independente a contrapelo da ditadura foi defendida em 2021, na ECA, sob orientação do professor Marcos Aurélio Bulhões Martins, da ECA.

Mais informações: e-mail patibertucci@yahoo.com.br, com Patrícia Bertucci


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