Como a mídia molda percepções sobre a crise hídrica no Brasil

Estudo analisou mais de dois mil artigos de jornais para mapear narrativas sobre a escassez de água, entre elas, as focadas nas mudanças climáticas, na justiça hídrica, e aquelas com críticas à má gestão e à ideia de abundância de água no Brasil

 11/01/2024 – Publicado há 10 meses     Atualizado: 07/06/2024 às 15:51

Texto: Denis Pacheco, com reportagem de Valéria Dias

Algumas narrativas sobre a crise hídrica influenciam as tomadas de decisão, enquanto outras são marginalizadas – Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

A escassez de água no Brasil é um problema complexo, que afeta diversas regiões do País, especialmente as áreas urbanas e ruralizadas. Um estudo recente, liderado por Lira Luz Benites Lazaro, pós-doutoranda no Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, revelou uma visão aprofundada sobre a crise hídrica no Brasil, com especial atenção ao estado de São Paulo.

O artigo Avaliando narrativas de escassez de água no Brasil – Desafios para a governança urbana, publicado no periódico Environmental Development, se originou da análise de mais de dois mil artigos de jornais de grande circulação no Brasil, cobrindo o período de 2010 a 2021, para mapear narrativas de escassez de água no País, identificando as fontes e tipos de narrativas mais persuasivos sobre o tema.

De acordo com a autora, o trabalho evidenciou que as narrativas observadas estão longe de serem neutras. “As narrativas sobre as mudanças climáticas, a escassez hídrica e outras questões importantes, como a pandemia, são produzidas em um contexto social e político, e cada grupo tem seus discursos predominantes, que muitas vezes acabam sendo os mais influentes nas tomadas de decisão”, esclarece.

Ela destaca a importância de refletir sobre temas como gestão, mudanças climáticas, acesso à água e impactos ambientais para entender melhor a formulação de políticas públicas e a perspectiva social sobre a crise hídrica. “Os discursos ocorrem em um contexto político e social, e algumas narrativas muitas vezes influenciam as tomadas de decisão e a gestão, enquanto outras são marginalizadas”, pontua a autora.

Análise de mídia

O trabalho utilizou uma abordagem metodológica que combinou análise de mídia e análise narrativa para identificar as principais narrativas de escassez de água no Brasil. A análise de mídia foi realizada por meio da coleta de artigos de três dos principais jornais brasileiros, que abordaram o tema da escassez de água entre 2010 e 2021. Os jornais utilizados foram Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo.

“Utilizando a metodologia das narrativas, fizemos uma tipologia para avaliar o impacto dessas narrativas na formulação das políticas públicas e na gestão da água”, esclarece a pesquisadora.

  • Primeiro, as narrativas institucionais e de má gestão destacam problemas como a falta de planejamento e infraestrutura adequada, a coordenação ineficiente entre os gestores da água e a necessidade de melhorar as estruturas governamentais para uma gestão mais eficaz dos recursos hídricos.
  • Paralelamente, as narrativas centradas no clima ressaltam a vulnerabilidade do estado de São Paulo às mudanças climáticas e a importância de adaptar o planejamento e a gestão para aumentar a resiliência das cidades.
  • Além disso, as narrativas de abundância questionam a percepção de que o Brasil tem recursos hídricos em abundância, apontando para a insustentabilidade dessa percepção diante da demanda crescente e da falta de planejamento.
  • Já as narrativas de justiça hídrica abordam o acesso limitado à água e a infraestrutura inadequada. Por fim, as narrativas de negação tendem a minimizar a gravidade da escassez de água, enquanto as de desmatamento ligam a falta de água ao desmatamento em biomas como Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica.

O levantamento, que foi parte de um projeto financiado pela Fapesp, empregou técnicas de Processamento de Linguagem Natural para extrair e categorizar diversos discursos sobre a escassez de água. “A pesquisa surgiu a partir de dois projetos financiados pela Fapesp: ‘Variabilidade climática do estado de São Paulo’, na verdade na Metrópole Paulista, e o meu projeto de pós-doutoramento, também financiado pela Fapesp, sobre o nexo entre energia e alimentos”, conta Lira Lazaro.

O trabalho começou enquanto a especialista, que é doutora pelo Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), estava na Universidade de Durham, na Inglaterra. “Foi utilizado o banco de dados da Factiva, que abrange dados econômicos, notícias globais e brasileiras, incluindo mais de 2.000 artigos de 2010 a 2021 para nossa análise”, explica.

Gestão Hídrica em SP

Problemas na gestão hídrica estão associados à dificuldade de diálogo da população com a  gestão pública e,  muitas vezes, à falta de transparência, avalia Pedro Jacobi – Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil via Wikimedia Commons/CC BY 3.0 BR

A investigação de Lira Lazaro também destaca a má gestão e falta de planejamento estratégico em São Paulo desde a década de 1970, agravada pela crise hídrica de 2014-2016. No texto, a Sabesp, empresa até então semi-privatizada, é criticada pela falta de investimento e infraestrutura adequados. Além disso, os comitês de bacias hidrográficas são apontados como ineficazes devido a desafios como a legitimidade das representações e dificuldades em estabelecer diretrizes para debates politizados.

Para o professor Pedro Jacobi, orientador do projeto e pesquisador colaborador do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, “o principal problema [da gestão hídrica] está associado ao tema da dificuldade do diálogo com a própria gestão pública, a população com a gestão pública, muitas vezes da falta de transparência e, ao mesmo tempo, dos entraves administrativos da própria gestão.”

Durante a crise de 2014-2016, o governo de São Paulo adotou várias medidas, incluindo a utilização de reservas técnicas e políticas de incentivo e penalização relacionadas ao consumo de água. No entanto, algumas dessas medidas, como a redução da pressão da água, geraram problemas adicionais, como saúde e contaminação da água.

“Quando falamos da gestão hídrica associada à política nacional e no caso específico do comitê de bacia, nós temos diferentes segmentos. Então, no caso de São Paulo, quando se fala em sociedade civil, se incluem todos os atores que não são públicos; já em nível nacional, você tem uma situação diferente”, defende Jacobi.

Para ambos os pesquisadores, o trabalho recente enfatiza a necessidade de uma avaliação e melhoria contínua nas estruturas de governança da água e ressalta a importância de desvendar as diversas narrativas sobre a escassez de água e seu impacto nas soluções, políticas e gestão da água. Em especial, considerando o contexto que envolve decisões ambientais e seus impactos em um cenário de mudanças climáticas que afeta também o Brasil.

Sobre isso, o professor reforça que “em termos de clima, uma coisa muito preocupante é a questão do desmatamento na Amazônia e o impacto no que ficou denominado como ‘rios voadores’. Quanto mais houver desmatamento, maior o risco de perda de evapotranspiração, e isso se reflete diretamente no volume de chuva”.

Promover eficácia sustentável

Trabalho critica a Sabesp, empresa até então semi-privatizada, pela falta de investimento e infraestrutura. Já os comitês de bacias hidrográficas são apontados como ineficazes devido a desafios como a legitimidade das representações e dificuldades em estabelecer diretrizes – Foto: Antônio Lima/Secom

Para Lira Lazaro, a pesquisa traz à tona a complexidade da crise hídrica no Brasil, destacando a interdependência dos vários setores envolvidos e a importância de políticas públicas que considerem essa complexidade.

Apesar de não ter mapeado a possível influência das narrativas reportadas diante da tomada de decisões políticas sobre o assunto, a especialista teoriza que relacionar ambos os assuntos seria “valioso”.

“Por exemplo, poderíamos cruzar os dados para mostrar como certas decisões foram tomadas em resposta a essas narrativas”, afirma ela ao pontuar que o evidenciamento da inação do Poder Público também constituiria uma conclusão importante. “O silêncio é uma forma de negação que usa a fábula clássica das roupas novas do imperador como exemplo de uma conspiração de silêncio, uma situação em que todas as pessoas se recusam a reconhecer uma verdade óbvia ou relutam em afirmá-la publicamente”

A análise é um lembrete importante de que as crises hídricas são questões multifacetadas, influenciadas por uma variedade de fatores sociais, políticos e ambientais, e que uma compreensão aprofundada das narrativas envolvidas pode ser essencial para a formulação de soluções mais eficazes e sustentáveis.

Mais informações: e-mails lbenites@usp.br, com Lira Luz Benites Lazaro e prjacobi@usp.br, com Pedro Jacobi


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