Blog
Com todos os elementos que têm sido comuns na divulgação de outras drogas sem eficácia contra a covid, supostos estudos com ivermectina trazem erros metodológicos crassos – mas ajudaram em narrativa que gerou lucro e influência política para alguns
A ivermectina é o antiparasitário que ajudou a tratar a “cegueira dos rios”, causada por um verme que afetava populações na África Central, além de ter largo uso na pecuária bovina. A droga deu ao seu inventor um prêmio Nobel em 2015.
A história deste composto na pandemia começa quando um trabalho feito em laboratório mostrou que, in vitro (em cultura de células) e em altas doses, ele podia impedir a replicação do sars-cov-2, além de aumentar a resposta imunológica, relembra o médico e professor da USP Bruno Caramelli. “O próximo passo foi testar em humanos, mas nenhum estudo clínico bem desenhado mostrou eficácia da ivermectina na covid”, diz o médico, que também é um combatente ativo da pseudociência na pandemia.
“Quando começaram a aparecer artigos positivos sobre ivermectina e covid, eles vinham de locais com pouca tradição naquela área de pesquisa, e publicados em revistas de baixo rigor na revisão. Mas como já estava claro que cloroquina não servia para a covid, partiu-se para a ivermectina como um novo ‘salvador’“, diz o professor da Unicamp Leandro Tessler.
Assim, começou a haver mais estudos sobre ivermectina, em alguns casos com mais rigor. “Inclusive isso é algo que eu acho que jamais deveria ter sido financiado, projetos maiores baseados unicamente naquele estudo in vitro”, opina Tessler.
A ivermectina tem potencial de ser bastante tóxica, então é usada com precaução. “Ela pode ser tóxica para o fígado”, afirma Caramelli. “O estudo in vitro já usou doses cavalares, que nem seriam toleradas por seres humanos, mas a partir dele houve grandes projetos, e eles não encontraram resultado positivo. Todo estudo que encontrava algum resultado tinha feito um trabalho enviesado. Há uma série de armadilhas metodológicas nas quais eles caíram”, diz Tessler.
Um trabalho muito acessado e compartilhado foi este artigo divulgado no site da revista Cureus, que apresenta problemas de diversas ordens. Em primeiro lugar, os autores do artigo não declararam conflitos de interesse, como, por exemplo, que trabalhavam como consultores do laboratório produtor de ivermectina. Isso é considerado uma infração ética e costuma resultar na retirada do artigo do ar. Porém, após receber diversos alertas, a Cureus optou apenas por incluir uma correção.
Tessler também chama a atenção para as instituições de pesquisa dos autores. “Os dois primeiros autores são de ‘Institutos’ que na verdade são os consultórios deles. Outro autor é da Prefeitura de Itajaí, e outro, do Centro de Avaliação Genômica de Ribeirão Preto, que não são instituições de pesquisa. E os de instituição de pesquisa há alguns entre os últimos autores. Mas se você vai atrás da produção científica deles, não tem nada a ver com o assunto do artigo. Esse é o primeiro mau sinal deste artigo.”
A revista onde o estudo foi publicado também vem sendo muito questionada no seu processo de revisão. “A Cureus é uma revista que diz que todo mundo precisa ter voz. E como eles fazem isso? Ao submeter um artigo, o próprio autor indica um revisor”, explica Tessler, esclarecendo que, em boas revistas, os autores podem até indicar revisores, mas isso tem que passar por um crivo do editor, que analisa cuidadosamente o perfil de quem é indicado. Na Cureus, isso é automático. “Você indica quem que vai revisar o seu artigo e fica uma história entre amigos. Ninguém faz um filtro. Enquanto em revistas sérias o plantel de revisores é de pessoas reconhecidas como experts na área, na Cureus é quem for indicado.”
A revista, diz Tessler, afirma que não cabe a ela verificar se os autores são honestos, e que as instituições são as responsáveis pela honestidade dos seus afiliados. “Então, por exemplo, o Instituto Corpometria, que é o consultório do primeiro autor, é quem tem que garantir que ele é honesto. Se não, ele deve ser demitido por ele mesmo. Não por acaso, na Cureus é onde se concentram as publicações sobre ivermectina, cloroquina, e proxalutamida para covid. Todos trabalhos mal feitos.”
“Eu andei acessando bastante a Cureus uma época por causa de discussões de que estava participando, e começaram a aparecer pop-ups ‘venha ser nosso revisor’. Fico me questionando se qualquer um que entrar no site com frequência vai receber esse convite. Além disso, autores que enviam um determinado número de artigos recebem uma espécie de certificado, e o segundo revisor, que não poderia ser indicado pelo próprio autor, também pode ser indicado nos próximos artigos que ele submeter”, relata Ana Carolina Peçanha.
Outro ponto apontado por Caramelli é o prazo de revisão curto, que é até propagandeado pela revista como uma vantagem da mesma. “Olhando o histórico deste artigo da ivermectina, vemos que a revisão por pares começou no dia 4 e foi concluída no dia 13 de janeiro. E o trabalho foi publicado dia 15 de janeiro. Não dá para fazer isso em nove dias. Qualquer revista boa que pede para você revisar um artig, te dá pelo menos três semanas de prazo. Este artigo foi revisado em tempo recorde. Não teve nada para ser corrigido, nem erro de inglês? Nem voltou para os autores?”, indaga o professor da USP.
Esse sistema frágil de revisão se reflete nos erros metodológicos encontrados nos artigos. O artigo da ivermectina, diz Alencar Neto, é extremamente confuso. “Não fica claro se é um estudo prospectivo ou retrospectivo, quer dizer, se os pesquisadores avaliaram o passado ou avaliaram a partir de um ponto no presente e continuaram. Faz toda a diferença isso na pesquisa.”
Ele também não deixa claro os desfechos que serão pesquisados. “Isso é essencial, pois a partir da definição dos desfechos se faz o cálculo do tamanho amostral, isto é, se define quantos pacientes precisa haver no estudo. Outra coisa: onde estão os termos de consentimento dessas 200 mil pessoas? Não vi nada sobre isso. O estudo diz que comparou quem não recebeu ivermectina pela Prefeitura de Itajaí versus quem recebeu, e qual é a mortalidade dos dois grupos. E encontra como resultado que o grupo que recebeu pela prefeitura teve uma mortalidade menor. Mas como saber se todo mundo que recebeu ivermectina pela prefeitura tomou? E se quem não recebeu, não tomou por outras vias? Você acha que uma pessoa que não recebeu não pode ir à farmácia e comprar?”, questiona Alencar Neto, explicando que isso é chamado de crossover, e até pode acontecer nos estudos, mas é preciso registrar, já que, quanto maior o crossover, menor vai ser a confiança no resultado final. “Tudo isso não fica claro, e me indica uma falha dos autores e também da revista que aceitou o artigo.”
Outro ponto apontado por Alencar Neto é que, nos dados que os próprios autores colocaram para apreciação pública depois, havia paciente registrado com 119 anos – sendo que a brasileira mais idosa havia morrido com 116 anos. Outro aparece como tendo tomado 6 mil comprimidos de ivermectina.
“Isso pode ser tanto uma fraude quanto um erro. Eu não quero fazer um juízo de valor, mas se estes dados não são corrigidos ou retirados, a análise que foi feita depois fica toda comprometida. A análise está comprometida por isso e pelo grande crossover que pode ter existido e a gente não sabe. E a gente provavelmente nunca vai ter esse número porque foi uma pesquisa observacional e a metodologia deles é incapaz de perceber isso. Como falei, seria uma pesquisa que, no máximo, poderia gerar uma hipótese, mas tem todos esses problemas.”
Tessler também chama atenção para o fato dos grupos não terem sido aleatorizados, ou seja, a pesquisa compara o grupo que voluntariamente pegou ivermectina na prefeitura com um suposto grupo que não pegou (suposto pois não há controle nenhum). “Isso leva a graves vieses e correlação entre variáveis. Por exemplo, o grupo que buscou os comprimidos pode ter condições socioeconômicas muito diferentes dos demais, preocupações com saúde e higiene, que podem ser a real causa de melhor desfecho e que não são controladas.” Além disso, ele diz que há problemas com a população considerada, ora só da cidade, ora das cidades ao redor. “É um estudo metodologicamente muito mal feito que não resistiria a uma revisão por pares minimamente rigorosa. Por isso só consegue ser publicado na Cureus”, declara.
Dados divulgados, não em um periódico científico, mas em um site de autoria anônima, também foram largamente usados como justificativa por quem defendia o uso da ivermectina contra a covid. O site IvmMeta argumenta ter realizado uma metanálise com dezenas de estudos sobre ivermectina, chegando à conclusão que é quase impossível a droga não funcionar contra a covid.
“Uma metanálise é uma avaliação de vários estudos que possuem uma metodologia similar para tentar aumentar o poder do teste dessa hipótese. Se há várias pesquisas pequenas que estudam populações parecidas e desfechos semelhantes, é possível juntar todos e fazer uma avaliação deles. Mas para a metanálise ser boa, os estudos precisam ser robustos e ter populações e desfechos a serem avaliados parecidos. O IvmMeta junta estudos sem crivo de qualidade e trata o resultado como se fosse um placar, o que é bizarro do ponto de vista metodológico, além de jogar com a ignorância das pessoas sobre esse tema”, critica Alencar Neto.
“Ele simplesmente lista tudo que foi publicado sobre ivermectina, não importa a qualidade. Inclui até artigo de opinião. O pesquisador que ganhou um prêmio Nobel pela ivermectina escreveu um artigo dizendo que, na opinião dele, a ivermectina deveria ser usada contra covid, e o site incluiu isso como uma evidência que a ivermectina funciona! Então ele lista os artigos dando o mesmo peso para todos, e não é assim que a gente faz uma metanálise comparativa.”
Há ainda um erro estatístico crasso, que pode ser um pouco complicado para quem não é do meio científico, mas foi apontado por todos os pesquisadores entrevistados nesta matéria. No IvmMeta, cada trabalho que conclui que a ivermectina funciona é contado como “positivo”, e os que dizem que ela não funciona, como “negativo”. “Aí eles calculam qual é a probabilidade de, jogando moedas para cima, elas darem tantos positivos e chamam isso de ‘valor p’. Que não tem nada a ver com isso; na verdade, valor p é a probabilidade de, se a sua hipótese nula estiver correta (por exemplo, se o tratamento testado não funciona melhor que o placebo), mesmo assim você ter resultados mais extremos do que os que obtêm.”
A conclusão, ao final, é que a chance da ivermectina não funcionar contra a covid, dados esses resultados, é de uma em um trilhão. “Há diversos vídeos de médicos brasileiros dizendo isso com a boca cheia: “Olha só, a chance de ivermectina não funcionar é de uma em um trilhão’, usando este site como fonte”, lamenta o professor da Unicamp. Em resumo, o IvmMeta “faz uma mistura de erro estatístico elementar e falta da revisão sistemática, que não é feita – eles simplesmente agrupam os artigos. Teriam que avaliar a qualidade deles”.
Chama a atenção que o site tem gráficos, tabelas, justificativas, e é bem apresentado, apesar do conteúdo enganoso. “Isso é algo que sempre vemos na pseudociência, ela tenta imitar a linguagem dos artigos científicos”, conclui Tessler.
Quem ganha o quê com a ciência ruim
Segundo Alencar Neto, entre os que lucram com a propagação de estudos pseudocientíficos, estão “os médicos que entram nessa onda, que atrai muito clamor popular e faz aumentar o preço de consultas”. Também ganham “os autores dos estudos que, ao apresentar resultados positivos têm maior chance de obter bônus, patrocínios, viagens a congressos”. Por exemplo, o grupo Médicos Pela Vida – cujos integrantes assinam o artigo na Cureus e defendem os medicamentos do kit covid – teve evento patrocinado pela VitaMedic, maior fabricante de ivermectina no Brasil. “Este laboratório financiou e ainda financia os Médicos Pela Vida”, afirma Tessler.
Os autores, assim como as revistas onde publicam, também ganham citações. “A revista que é mais citada e clicada consegue mais patrocínios”, detalha Alencar Neto. Também podem lucrar as farmácias – na pandemia vimos promoções sendo feitas para a venda de ivermectina, facilmente disponíveis nos balcões. E, é claro, lucram algumas indústrias farmacêuticas, como a própria VitaMedic citada, que fez publicidade para o uso de ivermectina na covid e viu suas vendas dispararem na pandemia.
“As empresas que comercializam e distribuem cloroquina e ivermectina no país envolveram o governo em uma publicidade para vender um discurso que desacredita quem defende a ciência. Semeando a dúvida para reduzir a credibilidade dos cientistas de verdade”, critica Caramelli.
Além dos motivos financeiros, Tessler destaca os ideológicos. “No Brasil, o maior impulsionador da pseudociência na covid foi a política. Muitas dessas pessoas envolvidas ganharam prestígio entre seguidores do Jair Bolsonaro e agora vão disputar as eleições. Elas viraram interlocutoras do governo, se reúnem com o presidente, com o ministro… quer dizer, elas são ouvidas pelo governo e foram indicadas para falar por ele na CPI. O governo deveria falar com representantes de Universidades, de instituições de pesquisa com conhecimento. Mas preferiu falar com essas pessoas porque elas davam suporte à ideia que o próprio governo defendia: minimizar a pandemia e propagar a ideia de que estava tudo bem”.
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor. No caso dos arquivos de áudio, deverão constar dos créditos a Rádio USP e, em sendo explicitados, os autores. Para uso de arquivos de vídeo, esses créditos deverão mencionar a TV USP e, caso estejam explicitados, os autores. Fotos devem ser creditadas como USP Imagens e o nome do fotógrafo.