Artigo discute presença do mito das sereias nas obras de Homero e Clarice Lispector

A sedução pelo conhecimento é a discussão proposta na contraposição das sereias presentes nas obras “Odisseia” e “Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres”

 23/09/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 27/05/2022 as 15:30

 

Artigo discute o mito da sereia e a relação entre saber e sedução, contrapondo a obra Odisseia e o romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres – Clarice Lispector e Homero – Fotomontagem: Vinicius Vieira/Jornal da USP

 

Por Margareth Artur/Portal de Revistas USP

Normalmente se atribui à ideia de sereia um ser fantástico, conhecido por ser metade mulher e metade peixe, que canta e vive nos mares, encantadora para alguns e traiçoeira para outros. Nosso imaginário é constantemente aguçado por filmes e histórias desses seres. Em artigo publicado na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Adelia Bezerra de Meneses, professora voluntária do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, trata do tema do mito da sereia e a relação entre saber e sedução, contrapondo a obra Odisseia, de Homero, com o romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de Clarice Lispector. 

As sereias são seres míticos presentes em diversas culturas e em todas as artes desde a Antiguidade Clássica. Na Odisseia, de Homero, as sereias são vistas como “seres perigosos, que com uma voz maravilhosa, seduzem quem delas se aproxima, levando à destruição”. O canto é tido como armadilha para incautos mas, ao mesmo tempo, elas sabem de tudo, “prometem apenas, a quem as ouve, que partirá ‘mais’ sábio”. As sereias no mundo grego corresponderiam à serpente no mundo bíblico, convidando Adão e Eva a provarem o fruto perigoso.

O artigo traz, para esse estudo, a leitura do filósofo alemão Theodor Adorno (1903-1969) sobre o mito odisseico da sereia, “em um viés menos explorado na diluição desse mito, que é a inquietante relação entre sedução e saber, ou melhor: a sedução pelo conhecimento”, explica a professora. A partir disso, foi construído um paralelo do mito bíblico de Adão e Eva e a Árvore do Conhecimento com a relação sereia e serpente, presente no mito indígena da Mãe d’Água. 

A professora Adelia Bezerra de Meneses também fez uma correspondência entre a sereia do mundo grego e a serpente do mundo bíblico. A imagem retrata A queda do homem (Gênesis 3:4), com figuras de Rubens, e paisagens e animais de Brueghel – Foto: Reprodução

A professora conta que, em Odisseia, o personagem Odisseu não comeu o “fruto perigoso”, isto é, ele resistiu às sereias, escapando da danação. Nesse contexto, Theodor Adorno enxerga a Odisseia como a viagem metafórica do homem ocidental em busca da constituição do sujeito, deparando-se, enfrentando e vencendo seres tidos como monstruosos, como as sereias.

No Brasil, temos a Mãe d’Água, com aspectos “ofídicos” – o mito brasileiro alia sereia e serpente. Na literatura brasileira, Clarice Lispector, em sua obra Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, apresenta sua sereia, Lorelei, a buscar prioritariamente sua identidade como mulher que trilha a constituição do eu. Lorelei contracena com o personagem Ulisses, em uma alusão de Clarice à Odisseia, mas atuando num nível mais profundo que a simples sedução ao par amoroso, pois é nítida a articulação entre a sereia e o saber. 

Se, em Odisseia, Penélope espera, em Uma aprendizagem é Ulisses quem espera. A viagem é interior e efetivada pela personagem feminina. Adélia aponta o “jogo de reapropriações e inversões” que Clarice cria com as personagens Lóri, Penélope e Ulisses. Lóri quer seduzir Ulisses não pelos dotes físicos, mas pela busca do conhecimento: “Só quando dispensa todos os recursos exteriores da sedução, essa mulher está ‘pronta’ para ficar com o seu homem”, diz a professora. O mito da serpente do Éden que seduziu Eva e depois Adão, aparece em Clarice com o símbolo da maçã permeando toda a história. Ao morder a maçã, Lóri entra no Paraíso em “estado de graça”. 

Para Adelia, no romance de Clarice, o mito bíblico é desconstruído/reconstruído nesse recorte das relações entre sedução e saber, conhecimento e danação. Morder a maçã é transgredir, é ousar. A curiosidade e a fome de conhecimento sempre farão parte da caminhada humana, seja para beneficiá-la ou para fazê-la perder-se a si mesma.

A simbologia da maçã como a busca pelo conhecimento, afirma a professora, está presente no físico Newton, cuja teoria da gravidade significou um marco decisivo na ciência para a humanidade; no pretensioso símbolo da cidade de Nova York (a “Big Apple”) e ao que ela significa em termos de civilização e ambiguidade; e também figura estampada em celulares de alta tecnologia. “Em todo caso, a busca do conhecimento bordeja o abismo da danação”, conclui a autora. 

Artigo

MENESES, Adelia Bezerra de. Sereias.  Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, v. 1, n. 75, p.  71-93, 2020. ISSN: 2316.901X. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v1i75p71-93. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/169168. Acesso em: 15 jul. 2020.

Contato

Adelia Bezerra de Meneses Professora voluntária do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). E-mail adeliabm@terra.com.br 


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