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No Brasil, Halloween ofusca folclore brasileiro
Essa inversão cultural faz com que não lembremos que o dia 31 de outubro, no Brasil, é dedicado a um personagem genuíno do folclore nacional: o Saci-Pererê, que permanece parcialmente esquecido do nosso imaginário
18/09/2020
Por Bruno Militão
Arte: Beatriz Abdalla/Jornal da USP
Anualmente, comemora-se o Halloween no dia 31 de outubro. “Gostosuras ou travessuras?”, perguntam as crianças ao saírem fantasiadas pedindo doces de casa em casa. A festa, normalmente celebrada em países do mundo anglófono – falante da língua inglesa -, foi importada para a cultura brasileira.
A intensa influência, especialmente norte-americana, fez com que o Dia das Bruxas, como ficou conhecido por aqui, fosse celebrado como mais uma comemoração no calendário nacional. Personagens como vampiros e bruxas, que não fazem parte da nossa cultura, foram incorporados às festividades brasileiras, apesar das importantes lendas da cultura nacional que poderiam ser celebradas, como o Saci-Pererê, menino negro de uma perna só que usa uma carapuça vermelha e fuma cachimbo. Mas o que muita gente não sabe é que, de fato, esse personagem também é comemorado no dia 31 de outubro, data que foi oficializada em 2004 no Estado de São Paulo e, em 2010, em todo o País.
Para entender por que a celebração Halloween tornou-se tão comum no Brasil, apesar da presença de figuras emblemáticas no folclore brasileiro e que fazem parte do imaginário nacional, é preciso antes saber de onde vem a cultura de celebrar essa data e de que formas ela chega até nós.
Origens das festividades
Normalmente, quando pensamos em Halloween, ou Dia das Bruxas, imagens como fantasias, doces e abóboras esculpidas com rostos medonhos vêm à nossa cabeça. Mas não foi sempre assim, como explica Ana Carolina Chiovatto, doutoranda em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Segundo ela, as origens das celebrações baseiam-se na sobreposição de diversas culturas, com a presença de festividades e rituais de diversos povos que aconteciam no mesmo período.
Uma das origens do Halloween é o festival celta Samhain, que marcava o fim do período de colheita, e era seguido do festival do Dia dos Mortos, quando, supostamente, aqueles que se foram poderiam circular no mundo dos vivos. A cultura celta contempla diversos povos que viviam na Europa e tinham cultos em comum. “Essas festividades são comumente chamadas de pagãs, um termo enviesado, já que pensamos no paganismo em oposição ao cristianismo como ponto de vista dominante”, afirma Ana.
Com a conquista pelos romanos e a cristianização desses povos, muitos desses cultos começam a ser modificados. “Os festivais celtas estavam relacionados à fertilidade, tanto da terra e dos animais quanto das pessoas, o que, para os cristãos, era considerado bárbaro. Por isso, houve uma tentativa de apagamento desses rituais”, aponta ela.
Os povos cristãos, então, passaram a celebrar seus mortos no dia 2 de novembro e, no dia em que os celtas celebravam o Dia dos Mortos (1º), instituem o Dia de Todos os Santos. “O cristianismo instituiu o Dia de Todos os Santos porque, segundo sua visão, são eles os mortos aos quais devemos prestar culto”, diz Ana. Além disso, para a visão cristã, a ideia de que as almas pudessem circular no mundo dos vivos era extremamente pagã. “Por isso, os cristãos distanciaram-se da celebração celta: o Halloween (31), véspera do Dia de Todas as Almas (all hallows’ eve) distancia-se da sua origem”, ela explica.
Ana esclarece, por fim, que hoje o 31 de outubro possui dois lados: um das religiões neopagãs, que buscam reavivar o sentido do Samhain; e o outro, do festival relido pelo cristianismo, que vai se converter na festa infantil das “gostosuras ou travessuras”, tão comum nos Estados Unidos, com a qual temos contato e, aos poucos, vamos incorporando.
A chegada do Halloween ao Brasil
A população brasileira teve contato com o Halloween, como é celebrado nos dias atuais, por meio de filmes, séries de TV e outros produtos culturais estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos. Mas por que os brasileiros decidem celebrar a data da mesma forma como nos EUA?
Esse quadro pode ser explicado por meio de um conceito esboçado pelo teórico estrategista de relações internacionais, Joseph Nye, o soft power, normalmente traduzido como “poder brando”. Alexandre Ganan Figueiredo, historiador e pesquisador de pós-doutorado pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP, explica que esse termo diz respeito a um conjunto de iniciativas não militares ou econômicas, a fim de que um Estado atinja seus interesses de política externa.
“O soft power diz respeito à capacidade de um país ter influência direta em outros por meio de sua cultura, sua capacidade de se projetar como exemplo para o mundo”, ele explica. No caso dos EUA, um exemplo é a “poderosíssima indústria cultural norte-americana”, como produções de Hollywood e de séries de TV, que chegaram ao Brasil logo após a Segunda Guerra Mundial, “praticamente junto com a televisão”.
Outras formas desse poder se manifestam na influência acadêmica, como a leitura e intercâmbio de pesquisadores. Por fim, Figueiredo descreve também como elemento desse tipo de influência a exportação de um estilo de vida ideal, apresentado como um modelo a ser copiado. “Isso é muito forte aqui, seja no consumo dos produtos estrangeiros ou até mesmo copiando seus costumes, como é o caso da comemoração do Halloween no Brasil”, diz.
Ainda segundo Figueiredo, é tanto por meio do consumo da cultura norte-americana, como filmes e séries, quanto pela busca do ideal americano de vida, que a celebração do Halloween vai se instalando no País. “O Dia das Bruxas não possui relação com as tradições e a formação cultural brasileiras, por isso não é usual”, conclui Figueiredo.
31 de outubro: por aqui, é celebrado o Saci-Pererê
É a partir da perspectiva de que não há ligações entre a celebração do Halloween e a cultura brasileira que, em 2003, apresentou-se um projeto de lei para que, no dia 31 de outubro, fosse celebrado no Brasil o Dia do Saci, um dos mais conhecidos personagens do folclore nacional. Em 2004, a data foi oficializada no Estado de São Paulo e, em 2010, no País.
Bruno Baronetti, pesquisador e doutorando em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, vê o Dia do Saci como uma resposta à indústria cultural americana em um momento no qual filmes de grandes franquias, com personagens do imaginário do Halloween, como os vampiros, começavam a ganhar força.
“Além disso, havia uma percepção de que cada vez mais escolas do ensino básico valorizavam o Dia das Bruxas no modelo norte-americano”, aponta. Tendo o Brasil um folclore muito rico, com lendas e histórias vindas da miscigenação entre diversos povos, o que é próprio da nossa formação como País, foi colocado em questão: “Por que não promover uma reflexão sobre o papel da cultura nacional?”.
O Saci é uma lenda que traz tradições principalmente do Sul e do Sudeste do Brasil, mas apresenta características intrínsecas à formação do Brasil. “O Saci é um jovem negro, com seu cachimbo, um elemento indígena. Além disso, traz elementos da cultura árabe, que dominou, durante séculos, a Península Ibérica”, explica o historiador. Os elementos da cultura árabe presentes na lenda do Saci-Pererê manifestam-se na lenda do menino que pode ser preso em uma garrafa e conceder desejos, dispositivos narrativos presentes no ciclo de As Mil e Uma Noites, coleção de narrativas onde se encontra a figura do Gênio da Lâmpada. “A própria lenda dessa personagem representa o amálgama da nossa cultura.”
Algumas cidades do Brasil, sobretudo nos municípios de São Paulo, começaram a fazer festas para essas lendas do folclore nacional no dia 31 de outubro. “Em São Luís do Paraitinga, no Vale do Paraíba, temos a Sociedade dos Observadores de Saci, que todo ano promove a Festa do Saci”, conta Baronetti.
O pesquisador explica que os estudos folclóricos no Brasil, desde o início do século 20, por meio do Movimento Folclórico Brasileiro, e grandes estudiosos, como Mário de Andrade e Edison Carneiro, buscam a inserção desses temas nas escolas. “O Dia do Saci tem o papel de estímulo, de resgate da nossa cultura, e é justamente um contraponto a esse projeto colonizador e imperialista que busca inserir aqui esses elementos alheios à nossa cultura.”
“A ideia não é acabar com o Halloween, mas criar um contraponto para que as crianças, além da tradição estrangeira, já conhecida, passem a ter contato também com tradições e culturas nacionais”, conclui o historiador, resgatando um pensamento de Plínio Marcos, dramaturgo brasileiro, dizendo que “um povo que não ama e preserva as suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre”.
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