Embora a lei seja direcionada às instituições federais de ensino, o sistema de cotas ecoou na educação de todo o País – Arte: Jornal da USP

Lei de Cotas completa 10 anos e mostra-se efetiva na promoção de diversidade e inclusão

A pró-reitora Ana Lúcia Lanna pensa no conjunto da Universidade e reconhece que incluir, ou seja, criar condições para que essa diversidade integre a Universidade, é fundamental

 29/08/2022 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 31/08/2022 às 19:14

Texto: João Dall'ara

Arte: Ana Júlia Maciel

ALei de Cotas foi sancionada em 2012 e prevê a reserva de 50% das vagas de universidades e institutos federais de ensino superior a estudantes de escolas públicas. Nessa reserva, estão incluídas regras para destinar vagas a alunos de baixa renda, além de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. De acordo com José Marcelino de Rezende Pinto, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, a Lei de Cotas existe em função de diversos elementos, mas possui dois fatores principais: “O primeiro foi a constatação através de pesquisas de que o vestibular não é um sistema justo de seleção. Fatores associados à escolaridade dos pais — que no Brasil está associada ao nível de renda — têm influência nas condições do estudante.”

Além disso, ele menciona que o Brasil é um país que possui uma relação muito baixa entre o número de matrículas na educação superior e a população na faixa correspondente — geralmente de 18 a 24 anos. Conforme dados de um estudo da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação, a taxa bruta de matrícula é de cerca de 34%. Para Rezende, o vestibular se revela como um filtro socioeconômico e racial e as cotas são uma medida para tornar essa disputa mais justa.

O professor Renato Janine Ribeiro, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e atual presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), descreve o início das cotas: “A lei foi adotada em 2012, mas já havia políticas de cotas sendo conduzidas em vários Estados, sendo que a primeira política consistente de cotas a existir no Brasil foi instituída na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), há cerca de 20 anos.”

Janine Ribeiro diz que a implementação das cotas étnico-raciais causou muita polêmica, porque muitas pessoas diziam que, no Brasil, era muito difícil saber quem era branco e quem era negro. Para ele, a discussão não fazia sentido: “Eu lembro de ter lido um artigo do jornalista Elio Gaspari, em que ele dizia que, na hora de saber quem vai pelo elevador social e pelo elevador do serviço, qualquer um sabe quem é negro. Na hora de dar uma única vantagem, a primeira em séculos, a populações historicamente muito discriminadas, surgem essas questões”.

No artigo 7º da Lei, está prevista a revisão do programa após dez anos de funcionamento, mas até o momento não existem tantos posicionamentos sobre o assunto. O professor comenta que a lei sancionada pela presidente Dilma Rousseff determinava que, dez anos após sua implementação, o Poder Executivo promoveria uma reavaliação da política de cotas. Essa lei foi modificada no governo Temer, que retirou o sujeito da frase. Então, apenas está dito que será feita uma reavaliação depois de dez anos e não se diz quem fará. “A revisão não é obrigatória e o período de revisão é flexível, ao passo que pode ser adiado por meses ou anos. No momento não há uma data definida para que a discussão seja iniciada”, destaca Janine Ribeiro.

José Marcelino de Rezende Pinto – Foto: Divulgação

Renato Janine Ribeiro – Foto: Wikimedia Commons

Muitas pessoas têm o receio de que a Lei de Cotas decline ao completar dez anos. Mas o professor revela que, em conversa com o ex-ministro da Justiça e professor da Faculdade de Direito da USP, José Eduardo Cardozo, foi informado que, se a lei não prevê expiração ou tempo de variedade, ela vale até ser explicitamente revogada por outra: “A lei não prevê nada disso, ela diz apenas que será feita uma reavaliação da política, não que a lei precisará ser renovada. Ela continua e nenhum dos possíveis beneficiários das políticas de cotas tem por que recear que ela chegue ao fim”.

Importância das cotas

Caio César Pereira, estudante de Jornalismo da Universidade de São Paulo, descreve a sua relação com as cotas: “Passei muito tempo sem discordar ou concordar com as cotas, mas tentei ao máximo não utilizá-las. Porém, a partir do momento que passei a me debruçar um pouco mais sobre o assunto, eu entendi a importância delas e de como elas poderiam ser benéficas para mim”.

Ele menciona o fato de ter ingressado na universidade pública sem fazer cursinho, estudando sozinho em casa, quando a maioria das pessoas, principalmente na USP, fez cursos preparatórios para o vestibular para ingressar na universidade. “Para qualquer pessoa que, assim como eu, é oriunda de escola pública, nós invariavelmente acabamos saindo atrás no que tange à educação do que grande parte dessas pessoas. A forma que eu encontrei de tentar balancear um pouco mais as coisas foi utilizando cotas”, indica.

O sistema de cotas pressupõe a reserva de uma parcela das vagas de determinado curso. Desse modo, os cotistas disputam vagas com outros cotistas, ou seja, não concorrem às vagas destinadas à ampla concorrência. O professor Rezende comenta que, em algumas situações, a competição entre os cotistas é até maior: “Há um certo mito de que pelo sistema de cotas não há competição. Na verdade, existe uma competição tão ampla quanto, porque há mais população negra, mais população de escola pública no Brasil. Quando eu olho as matrículas do ensino médio no Brasil, 80% são da escola pública. Muitas vezes a concorrência é maior, o que a cota faz é tornar a competição um pouco mais justa, é isso que ela busca fazer”.

Caio Cesar Pereira – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Caio Pereira relaciona a sociedade brasileira a uma corrida para reiterar a função das cotas: “Se nós fizermos uma analogia da sociedade brasileira com uma corrida, as pessoas que são essencialmente brancas já saíram correndo muito antes do que a gente. Então, as cotas representam uma forma da gente conseguir chegar na linha de chegada ou tornar a partida pelo menos mais igual.”

O estudante não vê o sistema de cotas como uma medida final, mas sim como parte de um processo de democratização. Para ele, as cotas são uma medida paliativa e não uma medida definitiva. “É uma forma paliativa da gente conseguir começar a combater o problema, para que no futuro nós tenhamos outras alternativas para combater essa desigualdade racial e econômica que nós temos aqui no País”, ressalta.

Nos últimos anos, o conjunto dos alunos de graduação se mostrou mais diverso, especialmente após a adesão às cotas – Foto: Eric Haynes/Reprodução

Rezende aponta que as cotas são uma saída emergencial: “Emergencial não se resolve em dez anos, posso dizer que o Brasil teve cota explícita para brancos na educação por 400 anos, que foi o período da escravidão, e nós tivemos mais uns 100 anos de cotas implícitas, porque, em geral, os pobres, os negros, quando tiveram acesso à educação, sempre foi uma educação de baixa qualidade. As cotas são um remédio emergencial, mas um emergencial que precisa de tempo.”

Caio Pereira é um exemplo da importância e necessidade das cotas no Brasil. Ele relata: “As cotas são muito importantes para pessoas assim como eu, que vêm de escola pública, que são negras, que vêm de uma realidade social diferente da maioria que está aqui na universidade pública. Elas são importantes para mostrar que nós só não devemos estar aqui, como nós merecemos estar aqui”.

Cotas na USP

Embora a lei seja direcionada às instituições federais de ensino, o sistema de cotas ecoou na educação de todo o País. A Universidade de São Paulo, que é estadual, passou a instituir as políticas afirmativas de ingresso em 2016 e, mesmo que a adesão seja recente, é possível notar diversas diferenças no ambiente da Universidade. De acordo com Aluisio Segurado, professor da Faculdade de Medicina e pró-reitor de Graduação da USP, a Universidade de São Paulo debateu bastante sobre a propriedade de aderir às cotas. Ele comenta: “A diversidade é enriquecedora para o ambiente universitário, faz parte da nossa responsabilidade social como universidade pública de grande prestígio nacional e internacional fazer parte desse grande movimento de inclusão, garantindo o acesso a determinadas parcelas que estavam sub-representadas no alunado da USP”.

Apesar de as ações afirmativas de ingresso serem mais recentes na USP em comparação com outras instituições de ensino superior, os efeitos já são notáveis. “Ao longo dos anos em que temos participado dessa política, nós já temos algumas conclusões bastante importantes da certeza dessa decisão, que realmente foi importante para a Universidade de São Paulo aderir a esse movimento e que isso trouxe benefícios na ampliação dessa característica de diversidade nos nossos alunos, representando os vários segmentos da sociedade paulista e brasileira”, aponta o pró-reitor.

A proporção de vagas reservadas na USP contempla duas categorias: a categoria de egressos do ensino público, que contempla candidatos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas, e um segundo conjunto de vagas reservadas para egressos do ensino médio exclusivamente público, porém que se autodeclaram pretos, pardos ou indígenas.

Nos últimos anos, o conjunto dos alunos de graduação se mostrou mais diverso, especialmente após a adesão às cotas. O professor Segurado menciona: “Entre os alunos de graduação que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas, nós partimos de um patamar existente em 2016 de 14,6%. Esse porcentual vem tendo um acréscimo progressivo ano a ano, sendo que, no ano de 2022, nós passamos desses 14,6% para um porcentual de 22,7%”.

Aluisio Augusto Cotrim Segurado – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Se forem considerados somente os alunos que ingressaram após 2016, a presença de estudantes advindos do ensino público é considerável. O pró-reitor comenta que o salto foi de 17,9% em 2016 — que foi o primeiro ano de ação afirmativa — para 26,2% no vestibular de 2022, incluindo as duas modalidades de ingresso, o Sisu e a Fuvest. Já em relação ao porcentual de alunos oriundos do ensino médio integralmente público, “nós saímos de 2016 de um porcentual de 33,5% de egressos de ensino público para 51,7% em 2022. Então, desde o ano passado, nós já temos na USP uma maioria de ingressantes que são egressos do ensino médio exclusivamente público, o que de fato é um indicador de inclusão bastante importante”, ressalta o pró-reitor.

Já a ampliação da diversidade étnico-racial é ainda mais significativa nos números. No último quantitativo, que é de alunos oriundos do ensino médio exclusivamente público, que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas, o salto foi maior. Foi de 11% em 2016 para 21,6% em 2022.  O pró-reitor salienta: “Isso é visível nas nossas escolas, nas nossas faculdades e institutos quando nós frequentamos as unidades de ensino e pesquisa, quando formos às bibliotecas, às salas de aula, aos laboratórios, aos refeitórios”.

Aprimorar a inclusão na USP

Criada em maio de 2022, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento foi idealizada pela atual gestão da Reitoria da Universidade de São Paulo e aparece em um momento importante para a USP, que tem direcionado o seu foco para políticas que permitam mais diversidade em seu ambiente. Um dos objetivos da Pró-Reitoria é centralizar as iniciativas que estimulem a pluralidade na USP. Estão incluídas pautas como o ingresso na Universidade, as políticas de permanência para os estudantes e o acompanhamento de toda a comunidade universitária.

Ana Lúcia Lanna, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e pró-reitora de Inclusão e Pertencimento da USP, comenta sobre a perspectiva de aprimorar a inclusão na Universidade: “Não é apenas uma Pró-Reitoria de ações afirmativas, como a gente tem exemplos muito interessantes em várias universidades, ela é uma Pró-Reitoria de políticas de inclusão e pertencimento para alunos, professores e servidores técnico-administrativos. Ela pensa no conjunto da Universidade e reconhece que incluir, ou seja, criar condições para que essa diversidade integre a Universidade, é fundamental”.

As cotas são importantes, mas somente elas não são suficientes. “Não é suficiente eu colocar aqui dentro 50% de alunos de escola pública com os porcentuais equivalentes à população de pretos, pardos e indígenas, se eu não der efetiva condição de permanência. Isso significa fazer políticas para o conjunto da Universidade”, indica a professora Ana Lúcia ao reconhecer que mais políticas são necessárias.

Neste ano, serão implementadas duas mudanças no sistema de ingresso à USP. A primeira é a comissão de heteroidentificação, que procura responder às fraudes que eventualmente possam ocorrer nas cotas. A comissão atuará antes da matrícula ser consolidada. A pró-reitora comenta que a USP reconheceu que a forma como isso vinha acontecendo, que era por meio de denúncias, era muito penosa para as pessoas, para os movimentos, para os coletivos e para a instituição.

Ana Lúcia Duarte Lanna – Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Outra mudança é a modificação na convocatória de alunos aprovados. Antes, a chamada para as vagas era realizada de forma distinta para a ampla concorrência e os cotistas, isso fazia com que as vagas fossem definidas previamente. Agora, se um aluno egresso de escola pública ou que se autodeclara preto, parto ou indígena tem um desempenho que permite seu ingresso pela ampla concorrência, ele passa a concorrer nessa categoria e libera uma das vagas reservadas aos cotistas. A professora Ana Lúcia menciona: “Quando você fazia as listas de ingresso separadas, você de fato tinha alunos que entravam no perfil das cotas, seja socioeconômica, seja étnico-racial, que teriam entrado em ampla concorrência. Então, foi isso que foi alterado, a gente está muito contente, a gente acha que vai ser um vestibular inovador”.

As políticas de permanência também são fundamentais para a construção de um ambiente diverso, e uma das ações da USP é oferecer recursos para que os estudantes se mantenham na Universidade. “Nós queremos que elas sejam cada vez melhores, cada vez mais eficientes, cada vez mais adequadamente direcionadas aos alunos, ou seja, que a gente faça as escolhas corretas. Os alunos efetivamente precisam desse apoio para poder manter o cotidiano deles na vida universitária, ou seja, que eles possam comer, que eles possam morar, que eles possam ir ao cinema, que eles possam comprar um livro, que eles possam se locomover”, destaca a pró-reitora acerca da importância dos auxílios de permanência.

A professora Ana Lúcia discorre sobre o objetivo de fazer com que os alunos se sintam pertencentes ao ambiente universitário: “No sentido de que os seus lugares de diferenças, os seus lugares originalmente precários ou uma característica fenotípica que cause mais dor e exclusão do que outra, ou uma situação de reparações históricas não realizadas ou não plenamente realizadas, elas tem potência e a Universidade tem que dialogar com elas”. Outra preocupação da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento é a diversidade do corpo docente dos servidores da Universidade de São Paulo. A pró-reitora fala que a Universidade ainda é excessivamente branca do ponto de vista dos docentes. Então, esse é também um dos assuntos discutidos e pensados pela Pró-Reitoria em busca de uma universidade mais diversa.


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