Estratégias sindicais sobre inteligência artificial e negociação coletiva dos algoritmos

Por Atahualpa Blanchet, pesquisador da Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP

 16/07/2024 - Publicado há 6 meses
Atahualpa Blanchet – Foto: Reprodução/IEA-USP
O crescente uso de ferramentas de gestão algorítmica tem gerado profundas transformações nas relações de trabalho. Sistemas baseados em inteligência artificial (IA) são implementados não apenas para aumentar a produtividade nas empresas e instituições, mas também para reforçar o controle sobre os trabalhadores por meio de sofisticados instrumentos tecnológicos de supervisão.

Os sistemas de gestão algorítmica coletam dados pessoais e, em alguns casos, podem analisar o comportamento e emoções dos trabalhadores, influenciando as relações de trabalho e abrangendo o processo de contratação, a distribuição de tarefas, o monitoramento e controle dos trabalhadores, bem como a avaliação de desempenho e a tomada de decisões sobre promoções ou de demissões tanto individuais quanto coletivas.

A opacidade sobre os critérios de programação algorítmica nos sistemas aplicados no mundo do trabalho vem gerando uma progressiva assimetria entre o nível de conhecimento dos trabalhadores (sobre o tratamento e uso dos dados digitais coletados) e o dos tomadores de decisões no ambiente de trabalho (que utilizam essas ferramentas para obter informações e análises consolidadas sobre aspectos que afetam e controlam as relações e condições de trabalho).

Além da busca por instrumentos e mecanismos regulatórios (tanto nacionais como internacionais) para a aplicação de determinados princípios éticos, como a transparência e explicabilidade, é mais do que necessária a ação coletiva, coordenada e estratégica do movimento sindical diante dos casos cada vez mais frequentes, por exemplo, de discriminação algorítmica por vieses de diversas naturezas.

Discriminação algorítmica

Exemplos de violações de direitos por meio da aplicação de ferramentas de IA não faltam. Ao mesmo tempo, também é possível identificar uma série de ações concretas do movimento sindical para mitigar essas práticas.

Em um caso emblemático de discriminação algorítmica ocorrido na Itália, os trabalhadores invocaram judicialmente a Convenção de Proteção de Dados 108+ do Conselho da Europa e o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) da UE para considerar discriminatório o algoritmo de um aplicativo de entrega de alimentos. Este algoritmo classificava os turnos dos trabalhadores conforme sua “confiabilidade”, medida pela regularidade na assiduidade, sem considerar as justificativas por motivo de saúde dos trabalhadores para não realizar entregas.

Em outro episódio, ocorrido nos Estados Unidos, a American Civil Liberties Union apresentou uma queixa contra a empresa Meta (Facebook) perante a Comissão para a Igualdade de Oportunidades no Emprego, observando que a empresa publicava anúncios segmentados por gênero, dirigidos apenas a usuários masculinos por meio da utilização de algoritmos de recomendação.

Um exemplo de gestão algorítmica com programação discriminatória foi identificado na aplicação Predictive Hiring (contratação preditiva), que busca evitar possíveis custos futuros para as empresas por meio de previsões baseadas nos dados dos trabalhadores. Este algoritmo se baseia no descarte de candidatos a uma vaga de emprego que sejam mais propensos a pedir aumentos salariais ou apoiar a sindicalização por meio da transferência e análise de uma série de dados coletados dos trabalhadores por plataformas digitais.

Manual para a negociação coletiva dos algoritmos

O Manual para a Negociação Coletiva da União Geral de Trabalhadores da Espanha (UGT) é um exemplo concreto de como os sindicatos podem se preparar e mobilizar para abordar os desafios colocados pela IA no âmbito laboral. O material fornece orientação e ferramentas práticas para os sindicatos na negociação coletiva que abordem especificamente o impacto da IA nas relações laborais e a proteção dos direitos dos trabalhadores.

O manual destaca uma série de acordos coletivos que reconhecem o direito dos trabalhadores de não serem objetos de decisões baseadas unicamente em variáveis automatizadas e garantem o direito à não discriminação diante de sistemas baseados em algoritmos.

Um deles é a 29ª Convenção Coletiva da empresa El Norte de Castilla S.A. (2021-2023), que inclui disposições específicas relacionadas à introdução de novas tecnologias e seu impacto nas condições de trabalho. Esta convenção estabelece que “a empresa deverá informar ao Comitê de Empresa sobre qualquer projeto de introdução de novas tecnologias que possa modificar as condições de trabalho dos diferentes profissionais que integram El Norte de Castilla S.A. antes de sua implementação”. Além disso, garante que “a introdução de novas tecnologias não implicará na diminuição do número de trabalhadores fixos no quadro de pessoal”.

Outro exemplo sublinhado é a Convenção Coletiva da empresa Air Nostrum Training Operations, que aborda especificamente o uso de algoritmos nas relações laborais. Este instrumento estabelece que, caso a empresa decida utilizar programas ou algoritmos de decisão em qualquer processo laboral, deve informar previamente a um Comitê instituído pela empresa.

Além desses exemplos, o Manual da UGT da Espanha cita a Convenção Coletiva nacional das empresas e pessoas trabalhadoras de perfumaria e afins e a 24ª Convenção Coletiva do setor bancário contêm disposições relacionadas aos direitos digitais dos trabalhadores frente à IA.

Negociação coletiva dos algoritmos nos EUA: da NBA aos trabalhadores da eletricidade

Nos Estados Unidos, o estudo Union Collective Bargaining Agreement Strategies in Response to Technology realizado no âmbito do Center for Labor Research and Education da Universidade da Califórnia, Berkeley, apresentou uma série de respostas sindicais às mudanças tecnológicas no país. O documento descreve como os sindicatos estão aproveitando suas ações coletivas e acordos de negociação para abordar a transição digital e tecnológica.

O estudo destaca disposições em acordos coletivos de trabalho destinadas a estabelecer direitos e responsabilidades na adoção de ferramentas digitais e descreve cláusulas para mitigar a introdução de novas tecnologias no local de trabalho.

Entre os acordos coletivos analisados, destaca-se a Convenção Coletiva referente aos jogadores da Associação Nacional de Basquete dos Estados Unidos (NBA). Este instrumento, firmado em 2017 e renovado até 2030, estabelece limitações no uso das informações obtidas por meio do uso de tecnologias de monitoramento na avaliação de jogadores, principalmente para a negociação de salários.

O contrato da NBA garante o direito de participação e colaboração de sindicatos e empregados na tomada de decisões sobre o monitoramento de tecnologias. Além disso, cria um Comitê Consultivo conjunto para revisar as práticas e tecnologias de monitoramento e o uso de dados derivados de sensores.

O acordo inclui uma disposição que permite ao sindicato designar especialistas que possam validar dispositivos e estabelecer padrões de cibersegurança associados aos dispositivos. Também determina que os dados coletados pelos sensores só podem ser usados para fins esportivos e não para fins econômicos nem de negociação contratual.

Após o acordo NBA-CBA de 2017, outros sindicatos, tanto de esportistas como de outras categorias profissionais, incluíram algoritmos nas negociações coletivas.

Em 2019, o sindicato United Auto Workers (EUA) negociou um contrato com a General Motors que inclui disposições sobre o uso de inteligência artificial e algoritmos no local de trabalho. O contrato protege os trabalhadores de sofrerem sanções disciplinares ou de serem demitidos como resultado de uma decisão tomada exclusivamente por algoritmos.

Já a negociação realizada pelo Sindicato Internacional de Trabalhadores Elétricos (IBEW) junto a diversas empresas de serviços públicos estabeleceu cláusulas para que o uso de algoritmos não resultasse na perda de empregos.

Estes são alguns exemplos que destacam a importância de incluir cláusulas específicas sobre algoritmos e IA nas convenções coletivas para garantir a proteção dos direitos laborais e a adequada gestão da tecnologia no âmbito laboral. Além disso, refletem uma maior consciência sobre os desafios éticos e laborais associados ao uso da IA no local de trabalho, e a necessidade de abordar esses desafios por meio do diálogo social e da negociação coletiva.

O sindicato no desenvolvimento de sistemas de IA: O acordo entre a AFL-CIO e a Microsoft

Nos Estados Unidos, a American Federation of Labor and Congress of Industrial Organizations (AFL-CIO) e a empresa Microsoft Corp. anunciaram, no final de 2023, uma parceria entre ambas as instituições para dialogar sobre como a inteligência artificial deve observar as necessidades dos trabalhadores e incluir suas vozes em seu desenvolvimento e implementação de tecnologia nos setores produtivos.

Este acordo, o primeiro entre uma organização sindical e uma empresa de tecnologia centrado na IA, estabeleceu três objetivos: compartilhar informações detalhadas com líderes sindicais e trabalhadores sobre as tendências tecnológicas da IA; incorporar as perspectivas e experiência dos trabalhadores no desenvolvimento da tecnologia de IA; e ajudar a moldar políticas públicas que apoiem as habilidades tecnológicas e as necessidades dos trabalhadores de linha de frente.

Entre os postulados do acordo, merece destaque o compromisso de respeitar o direito dos empregados de formar ou filiar-se a sindicatos, desenvolver relações laborais cooperativas, negociar acordos coletivos que apoiem os trabalhadores diante das mudanças tecnológicas e ampliar o papel dos trabalhadores na criação de design algorítmico (justo) centrado no trabalhador, na capacitação e em práticas de IA responsável.

Outro eixo do acordo entre a AFL-CIO e a Microsoft consiste em estabelecer mecanismos de retroalimentação em que os representantes dos sindicatos compartilham conhecimentos e preocupações diretamente com os programadores da empresa que desenvolvem os produtos de IA, gerando a possibilidade de codesenhar e desenvolver tecnologia centrada no trabalhador antes de sua implementação.

O plano de trabalho do acordo entre a AFL-CIO e a Microsoft planeja uma linha de ação em educação em IA para trabalhadores e estudantes a partir de 2024, bem como o desenvolvimento de políticas conjuntas para aumentar as oportunidades de formação em ocupações tecnológicas não tradicionais.

Estratégia sindical sobre IA da Confederação Sindical das Américas (CSA)

Com o objetivo de aprofundar os debates do sindicalismo no contexto da digitalização, a Confederação Sindical de Trabalhadores e Trabalhadoras das Américas (CSA) tem publicado uma série de boletins e relatórios por meio de seu Observatório Laboral das Américas.

Os documentos abordam temas como o uso da inteligência artificial (IA) e a agenda de gestão algorítmica do trabalho, proporcionando ao movimento sindical das Américas ferramentas analíticas e estratégicas para enfrentar esses desafios. Além disso, a CSA tem criado espaços de reflexão e formulação dentro de grupos de trabalho como o de Desenvolvimento e Integração Hemisférica (GTDIH), onde se realizam atividades sobre as implicações do desenvolvimento da IA e se discutem os desafios que essa tecnologia apresenta para a classe trabalhadora.

Esses esforços buscam compreender melhor o impacto da digitalização no trabalho e desenhar estratégias que assegurem que a implementação de novas tecnologias beneficie todos os trabalhadores e trabalhadoras, promovendo a equidade, a justiça social e o desenvolvimento sustentável no âmbito laboral.

O desafio de globalizar o ativismo sindical sobre os impactos da IA

Na Europa já existem convenções coletivas que regulam a utilização da tecnologia, tanto em aspectos de vigilância dos trabalhadores quanto na distribuição de tarefas. As centrais sindicais, com base na Lei de IA da União Europeia, vislumbram o potencial da negociação coletiva como instrumento microrregulatório para aspectos como a proteção de dados, privacidade e direito à informação sobre o uso de ferramentas algorítmicas e seus critérios de programação.

Nos Estados Unidos, a ação estratégica das centrais sindicais busca influenciar tanto a empregabilidade quanto a origem do processo de design, teste e aplicação das ferramentas de IA por meio da articulação junto a empresas, academia e no meio político.

Em outros continentes, a academia desempenha um papel importante para desenvolver os elementos necessários à incorporação dos conceitos-chave e das atividades de formação sindical destinadas ao desenvolvimento de estratégias de ação voltadas às centrais sindicais.

O exemplo das iniciativas realizadas pela CSA ilustra o esforço de coordenação para a formulação de posicionamentos e estratégias de negociação coletiva dos algoritmos nas Américas.

Nesse aspecto, as ações de cooperação da Confederação Sindical Internacional são de fundamental importância para estender as iniciativas e boas práticas realizadas nos países da Europa, Estados Unidos e nas Américas para outras latitudes.

O desafio de globalizar o ativismo sindical em torno dos impactos da IA no mundo laboral é fundamental para garantir um futuro do trabalho justo e sustentável. À medida que a IA continua transformando nossas economias e sociedades, os sindicatos têm um papel fundamental a desempenhar na defesa dos direitos dos trabalhadores e na promoção de uma governança ética da tecnologia.

Digitalização: Oportunidades e Desafios para o Movimento Sindical

No atual contexto de desregulação da aplicação das ferramentas de IA no mundo laboral e em outros âmbitos, o movimento de trabalhadores e trabalhadoras tem uma oportunidade única para avançar em seu processo de revitalização.

Por meio da ação comunicativa e da promoção de atividades de formação em temas de digitalização, os sindicatos poderão se colocar em uma posição de vanguarda nos debates sobre a inteligência artificial, seus impactos no mundo do trabalho e a proteção social dos trabalhadores.

Para isso, a ação estratégica de inclusão de cláusulas específicas sobre algoritmos e IA nos instrumentos de negociação coletiva é uma dimensão fundamental para garantir vias eficazes para a proteção dos direitos laborais e a adequada gestão da tecnologia no âmbito laboral.

Nesse sentido, o surgimento de associações entre o movimento de trabalhadores e atores como a academia e as empresas de desenvolvimento de ferramentas de IA é um desafio estratégico para adaptar os sindicatos à era digital.

Junto ao desenvolvimento de vínculos interinstitucionais associativos, as negociações coletivas estão passando por um necessário processo de adaptação de natureza material, alterando seus conteúdos para regular o uso das ferramentas de IA e dos algoritmos no âmbito laboral, reconhecendo a importância de proteger os direitos dos trabalhadores e promover relações de trabalho mais justas e equitativas para a aplicação dos princípios éticos no marco da IA responsável.

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