Ser mulher negra é experimentar essa condição de asfixia social.
Sueli Carneiro
O contágio coloca em evidência as dificuldades vividas por grupos que o Estado fez questão de deixar à margem, entre eles estão: a população de rua, a carcerária, as mães solo, os desempregados, os trabalhadores informais, os indígenas, os idosos e os negros. Sob a pandemia, eles são contaminados, asfixiados e mortos; são transformados em números e vistos como peças do jogo político e da economia. Frequentemente, são esses os desumanizados pela narrativa de autoridades que enfatizam as estatísticas, os gráficos e as percentagens. De modo geral, o modo como se contam as vítimas exclui suas histórias.
Porém, o reverso da moeda existe: surgem narrativas que consideram a dor e o que há de mais humano. Essas histórias são trazidas pelos resistentes. Não por acaso, está acontecendo uma série de manifestos que reivindicam direitos sociais. Esses movimentos acontecem não somente aqui, mas também nos EUA – outro epicentro da pandemia.
A morte do segurança George Floyd, sufocado por um policial branco, levou a protestos que varreram os EUA e outros lugares do mundo por 12 dias. O grito “eu não posso respirar” ecoou por muitos lugares como dupla metáfora (do racismo e da doença). Semanas antes, a morte do menino João Pedro gerou comoção nas redes sociais, assim como, na semana posterior, a queda do menino Miguel. Nas três situações, o racismo emerge em meio às pressões político-econômicas enfatizadas pela doença, e novamente os resistentes expressaram-se nas ruas e nas redes sociais.
Preocupados com equidade, os resistentes são de diversas áreas: profissionais de saúde, professores, jornalistas, artistas e intelectuais. A arte e a cultura têm sido alicerces importantes para esses tempos de isolamento social. Nesse contexto, merecem destaque as ações de conscientização, promovidas por artistas, assim como os leilões de obras de arte para o socorro imediato das emergências ocasionadas pela pandemia.
Aqui assinalamos duas ações de artistas promovidas por intermédio das redes sociais: Aceita? (2014-2020), de Moisés Patrício, e Convivência, projeções em prédios vizinhos, ação em tempos de isolamento (2020), de Ana Teixeira. Ambas são intervenções divulgadas via Instagram e Facebook, respectivamente.
A série Aceita?, de Moisés Patrício, é um diário fotográfico, realizado desde 2014, via Instagram. São mais de mil imagens da palma da mão esquerda do artista. A mão se estende e oferece os mais diversos objetos encontrados nas ruas de São Paulo. Em algumas fotoperformances surgem palavras escritas. A cada dia uma imagem-enigma aos seguidores. Em todas, está o gesto de oferenda (essencial no candomblé). A mão, continuamente, expõe a intolerância étnica e religiosa. E cotidianamente questiona: “Aceita?”. Desde a chegada da covid-19 nas periferias, Patrício criou uma rede solidária de apoio às famílias do Jardim Elba (zona leste de São Paulo).
Já Teixeira, durante a quarentena, iniciou uma série de projeções noturnas nos edifícios próximos a sua casa, na capital paulista. São palavras, poemas, trechos de música e frases iluminadas, inspiradas ou autorais de escritores, jornalistas e artistas, tais como: Drummond, Leminski, Eliane Brum, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda, Jorge Menna Barreto, entre outros. Como as projeções não são em empenas limpas e lisas, a diagramação dos textos adapta-se às superfícies recobertas por janelas e sacadas. O evento ocorre nos arredores da casa da artista, mas rapidamente espalha-se pelo Facebook.
..Convivência nos coloca num estado de aproximação (mesmo afastados fisicamente) – a cada escrita projetada, uma reflexão sobre o tempo no qual vivemos. A parceria com Duda Téo, por exemplo, trazia as frases: “Vidas negras importam”, “A abolição nunca aconteceu”, “Escravos de um sistema genocida”. Em entrevista, a artista menciona: “Eu penso a arte como um respiro” – eu completaria ainda como uma reação à asfixia.