Por razões, ora estéticas ora etnográficas (ou combinadas), o século XX viu a expansão do mercado consumidor de “arte primitiva” e de objetos africanos. Esse crescimento do mercado refletiu (e foi refletido) em exposições em museus norte-americanos e europeus, na disseminação de galerias especializadas e na quantidade de peças adquiridas em leilões (GOLDSTEIN, 2008, p. 290).
Em terras brasileiras, a fase pioneira do modernismo esteve dividida entre o emprego das ousadas técnicas europeias e a busca pelas origens. Para esses artistas, “o moderno” era seguir as orientações das vanguardas, mostrando a identidade local. Lasar Segall, Tarsila do Amaral, Cândido Portinari e Di Cavalcanti ilustraram o cenário no qual a figura do negro surgiu, então, como “o povo brasileiro”. Nessas produções, persistia a distinção entre o “eu” e o “outro” aliada à ideia de um país “cordial” e “mestiço” (OLIVEIRA, 2017).
Quando Picasso, Matisse, Braque e outros artistas modernos “descobriram” a arte africana, estavam entusiasmados com sua expressividade, clareza estrutural e simplicidade técnica. Os objetos africanos até então vistos como etnográficos passaram à categoria estética
Nos desdobramento do modernismo, são exceções Mestre Didi e Rubem Valentim. Esses artistas incorporaram signos e tradições completamente desprovidos de exotismo: não representavam o “outro”, mas a si mesmos. Os altares de Valentim assumiram a linguagem concreta atrelada aos signos e às cores do candomblé. Mestre Didi se apropriou desses símbolos e construiu seus objetos com materiais, tais como, a palha e os búzios. No mesmo período, alguns colecionadores brasileiros, tal como Ema Klabin, iniciam a compra de arte africana. O circuito de exposições e os museus também se interessaram: na IV e na V Bienal de São Paulo (1957 e 1959), ocorreram mostras de escultura negra, o MAM RJ promoveu uma exposição de escultura africana (1957) e mais adiante, José Roberto Teixeira Leite, então diretor do Museu Nacional de Belas Artes, adquiriu a coleção africana do acervo (1964).
A reviravolta na produção de uma arte contemporânea de origem afro-brasileira teve seus primeiros indícios um pouco antes da virada do século XXI: as quebras das metanarrativas, os traços locais versus globais e as reflexões sobre o “fim da Arte” e o “fim da História” incentivaram a busca por referências e memórias, isto é, esses condicionantes levaram muitos artistas a repensarem sobre sua condição e sobre a de seu grupo. Simultaneamente, emergiu uma série de discussões com fundo social e histórico sobre a representação do negro na formação do “nacional”. Destacaram-se as efemérides ligadas ao ano de 1988 (centenário da abolição da escravatura no Brasil) e a promulgação da nova constituição brasileira.
No mesmo ano, a exposição A mão afro-brasileira, no MAM SP, reunia célebres artistas que o processo de apagamento, existente na construção da história da arte brasileira, não reconhecia como de origem negra ou mestiça, entre eles, Aleijadinho, João Timotheo da Costa e Antonio Bandeira. Em 20013, na nova edição da mostra, A nova mão afro-brasileira, no Museu Afro Brasil, os artistas históricos deram vez a novos nomes que, hoje, são agentes ativos da cena contemporânea das artes visuais brasileiras.
Durante a década de 1990, ao mesmo tempo em que se reivindicou a revisão dos papéis do negro e do mestiço na construção da história do Brasil e da arte brasileira, o movimento negro pleiteou a reparação dos danos socioeconômicos em decorrência da escravidão. Naquele momento, permanecia a luta pela valorização da cultura, da identidade, da questão jurídica, porém, sobressaíram-se as demandas de ordem material. Lembremos que, nesse momento, tivemos a instalação do neoliberalismo no país. Além do mais, diferentes sindicatos colocaram a temática racial na pauta de suas discussões.
Na mostra Brasil+500, Mostra do Redescobrimento, acontecida em 2000, a contribuição da arte afrodescendente para a formação de uma “história da arte brasileira” retornou com intensidade. E a exposição abriu uma década cercada por episódios nacionais e internacionais que reafirmaram os estudos voltados à arte africana e à arte afro-brasileira, entre esses acontecimentos estão: a abertura do Museu Afro Brasil em 2004 e a inauguração, dois anos depois, do Musée Branly. À época da formação de sua coleção, uma das críticas dirigidas ao museu francês era que este teria aquecido o mercado de compra e venda de “arte primitiva” e africana (GOLDSTEIN, 2008, p. 295). O que de fato aconteceu. Na década, contou-se ainda com os primeiros efeitos da Lei 10639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-brasileiras no sistema de ensino brasileiro.
[…] as quebras das metanarrativas, os traços locais versus globais e as reflexões sobre o “fim da Arte” e o “fim da História” incentivaram a busca por referências e memórias, isto é, esses condicionantes levaram muitos artistas a repensarem sobre sua condição e sobre a de seu grupo.
Os anos de 2010 encontraram-se e continuam envolvidos pelas ideias que giram em torno do “pluralismo estético”, das “relações entre modelos estéticos e etnográficos” e da “descolonização dos acervos”. As mostras Territórios, na Pina, Diálogos Ausentes, no Itaú Cultural, além da recente Histórias Afro-Atlânticas, realizada concomitantemente no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, revisionaram os acervos destas reconhecidas instituições e trazem à tona a discussão sobre o etnográfico, sobre a “estética do outro” e sobre os mecanismos de circulação e legitimação que são evocados, quando se trata de uma arte deslocada do eixo eurocêntrico.
Enfatiza-se, então, uma justificada resistência ao modelo etnográfico nas artes visuais, isto porque esse viés pode reiterar os traumas da “colonização do outro” (PARENTE, 2018). Essa reiteração é intensificada pela aura-fetiche atribuída àqueles que entraram nos sistemas de exposição e mercados artísticos, especialmente o mercado pode absorver e manipular esse discurso de reinvindicações, como nos alerta Tadeu Chiarelli: “é o mercado ditando: o que é arte e o que não é arte contemporânea. E alguns artistas negros se tornando os babies desse mercado. (…) E, também, é uma forma muito sutil e perversa de abafar o discurso” (apud VIANA, 2018, p. 114).
Nesse intenso debate entre aspectos etnográficos e estéticos, pesquisas sobre a arte africana que reexaminam a intepretação europeizada que essas peças receberam até os dias atuais são bem-vindas pelos artistas e por uma série de investigadores que se dedicam ao tema. Já as referências africanas, nos trabalhos atuais, tentam reconstituir os laços perdidos pela diáspora; remontam uma memória fragmentada que nunca foi única ou inteiriça (reafirmando que o continente africano é formado por diversas etnias, dialetos e hábitos culturais e, que longe de ser único; ele é múltiplo). A procura dos afrodescendentes, em sua grande maioria, está mais no desvelar-se do que na discussão sobre “outro”. Eles arriscam-se a “fazer arte”. Essa postura de protagonismo é o “novo” que o sistema da arte quer transformar em mercadoria.
A passagem desses artistas pelas grandes exposições e por coleções reconhecidas confirma ao mercado a legitimidade desta produção. Observemos que muitos são representados por galerias expressivas; outros, tais como Bispo do Rosário e Sonia Gomes já tiveram seus trabalhos expostos em megaexposições, como a Bienal de Veneza, por exemplo. Porém, outros artistas ainda notam que o reconhecimento se dá mais facilmente na esfera internacional do que na nacional. Nesse sentido, a Sotheby´s, por exemplo, registrou, na última década, cifras altíssimas nos leilões de peças africanas. E registre-se ainda o crescente interesse de colecionadores estrangeiros pela produção artística brasileira, particularmente nas feiras, tais como, a Art Basel e a ARCO.
Diante das presentes pontuações, confirma-se que as relações entre a arte visual afro-brasileira, as instituições legitimadoras e os demais agentes do sistema da arte proporcionam uma discussão profícua e aberta às novas perspectivas. Como espectadores, resta-nos aguardar a finitude da década em curso e os desdobramentos que ela nos trará para reflexão. Longe de ser “uma onda negra”, as imbricações que envolvem esse debate e esse tipo de produção nos aproximam à imagem do “tsunami” – que nos leva todas as certezas e nos deixa com diversas possibilidades.
REFERÊNCIAS
AJZENBERG, Elza e MUNANGA, Kabengele. “Arte Moderna e o Impulso Criador da Arte Africana”. Pesquisa em Debate. Edição 9, Vol. 5, n. 2, jul/dez. 2008.
GOLDSTEIN, Ilana. “Reflexões sobre a arte ‘primitiva’: o caso do Musée Branly”. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 14, no. 29, p. 279-314, jan./jun. 2008.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. “Memória da Pele – o devir da arte contemporânea afro-brasileira”. Arte e Cultura da América Latina. São Paulo: Terceira Margem. Vol. XXVIII, 2º. Semestre, 2012, p. 35-42.
OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. Mulheres “Negras e Perigosas”. Jornal da USP. 18 dez. 2017. Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/mulheres-negras-e-perigosas/. Acesso em 04 set. 2018.
PARENTE, Alessandra. “Tensas relações entre arte e política: as vanguardas e o modelo etnográfico”. Cult. 29 ago. 2018. Disponível em https://revistacult.uol.com.br/home/as-vanguardas-e-o-modelo-etnografico/. Acesso em 30 ago. 2018.
VIANA, Janaina Barros Silva. A invisível luz que projeta a sombra do agora: gênero, artefato e epistemologias na arte contemporânea brasileira de autoria negra. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2018 (tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte).
VIANA, Wagner Leite. Receita para dar o troco ou para que as cicatrizes sejam marcas de esperança e superação de nossos corpos ou ainda para nos despir de violências, 2011-2018 (folheto para a performance Mau Olhado Bem Olhado).