Polarização ideológica e política externa no Brasil

Por Pedro Feliú, professor do Instituto de Relações Internacionais da USP

 24/05/2024 - Publicado há 7 meses

Em artigo recente, os pesquisadores Cesar Zucco e Timothy Power estimam a ideologia dos partidos políticos e presidentes brasileiros dos anos 1990 aos dias atuais. Os autores concluem três movimentos fundamentais acentuados a partir de 2013: a polarização ideológica entre os partidos no Legislativo aumentou significativamente, presidentes estão mais distantes da ideologia mediana no Congresso e o centro do espectro político tem sido cada vez menos ocupado.

Os desafios para o presidencialismo de coalizão no terceiro mandato de Lula são evidentes. O Executivo tem grande dificuldade de controlar o orçamento e avançar a sua agenda legislativa, enfrentando elevados custos políticos para manter uma coalizão majoritária no parlamento. E a política externa? Como é impactada pelo aumento da polarização ideológica?

A troca recente de governo opõe ideologias distantes: a centro-esquerda de Lula (2023-atual) e a extrema-direita de Bolsonaro (2019-2022). É plausível esperar que a troca de governos tão distintos ideologicamente gere mudança na política externa. Vejamos alguns posicionamentos recentes do Brasil.

Na segurança internacional, destacaria a invasão russa da Ucrânia. Tanto Bolsonaro quanto Lula posicionaram-se de maneira neutra, ainda que o Brasil tenha dado alguns votos contra a invasão russa no seu mandato no Conselho de Segurança da ONU. Pouca mudança. Na arena comercial, o governo Bolsonaro assina o acordo entre Mercosul e União Europeia e Lula se esforça para concretizar a sua difícil ratificação. Novamente, sem mudança. Na integração regional, apesar dos discursos negativos de Bolsonaro e sua equipe sobre o Mercosul, nada mudou muito, especialmente a tarifa externa comum, pretenso empecilho para a negociação de mais acordos de livre comércio. Embora Lula seja mais entusiasta da integração regional, não há decisões muito divergentes entre ambos os governos.

Na relação com os EUA, podemos apontar um Brasil bastante alinhado a Washington nos dois primeiros anos de Bolsonaro. Com a vitória de Joe Biden na Casa Branca, percebeu-se que o alinhamento de Bolsonaro era com Trump, não Washington. Lula mantém uma boa relação com os EUA, certamente mais autônoma se comparada aos primeiros anos de Bolsonaro e mais parecida com os dois últimos anos de seu predecessor.

Com a China, o governo passado tentou ideologizar a política externa e o radicalismo de direita ameaçava uma guinada no exterior. O agronegócio e o Senado Federal não deixaram o governo prosperar rusgas com Pequim, demandaram a demissão do ex-chanceler Ernesto Araújo e a política externa brasileira não se moveu tanto. Vale lembrar que os atores domésticos que reprimiram a guinada ideológica do governo Bolsonaro em relação à China eram tanto de direita quanto esquerda. O que poderia ser uma mudança mais intensa, não se concretizou.

Nas relações com a Venezuela há uma mudança significativa: do rompimento das relações diplomáticas no Bolsonaro à reaproximação em Lula, ainda que esta última cercada de cautelas. Talvez a Venezuela seja mais exceção do que regra na política externa, dado que o país caribenho virou um jargão na política eleitoral brasileira.

A percepção central é de pouca mudança na política externa, a despeito da crescente polarização ideológica. A dimensão ideológica esquerda-direita, muito útil para agregar preferências como privatização, bolsa família, legalização da maconha, reforma trabalhista, previdência, carga tributária, liberdade religiosa, aborto, entre outros temas, não é tão eficiente para descrever as preferências de política externa. Há polarização intensa nos assuntos domésticos e um pouco mais de consenso na política externa.

Fundamentalmente, a ideologia nos diz sobre como a sociedade dever ser organizada, como os recursos da sociedade devem ser distribuídos, e onde reside o poder. No âmbito internacional, como o lugar do Brasil no mundo é um só, tanto para a direita quanto para a esquerda, não há grande divergência nesses três pilares da ideologia.

Observando-se como os países votam na Assembleia Geral da ONU, o Sul Global todo converge em seus posicionamentos, independente dos governos nacionais serem de direita ou esquerda. Como esses países compartilham a mesma posição desprivilegiada no mundo, é razoável convergirem na defesa do direito internacional em detrimento da supremacia do poder, maior participação nas instituições internacionais e distribuição mais justa dos recursos. Embora haja divergência ideológica na política externa, ela é distinta da polarização esquerda-direita observada internamente.

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