Vale a pena trazer para o Brasil as disputas do Oriente Médio?

Por Eva Alterman Blay, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP

 24/09/2024 - Publicado há 3 meses

Em junho de 1964, fui visitar a Universidade de Brasília acompanhada pelos professores Albertino Rodrigues e Perseu Abramo, meus colegas de São Paulo. Me levaram para conhecer o que seria o planejamento urbano de Brasília, que eles já vislumbravam conforme o planejado por Niemeyer e Lúcio Costa. Acabávamos de sofrer o golpe militar, e a intervenção já era visível na Universidade de Brasília. Portas fechadas, cursos interrompidos, o medo atravessava os corredores vazios…

Estávamos na véspera do endurecimento da intervenção militar sobre o saber científico, a repressão aos livros, e principalmente aos professores, logo expurgados do ensino. Foi então que tive a certeza de que meu lugar deveria ser garantir a liberdade de ensinar seguindo o que meus professores da USP ensinavam: Florestan Fernandes, Aziz Simão, Maria Isaura Pereira de Queiroz, meus mestres e, ao longo da vida, meus amigos. Conforme a ditadura apertava, alunos e professores iam sumindo. Tivemos uma reunião com Ruth Cardoso, professora de Antropologia, num corredor (ocupar uma sala seria subversão), e decidimos que não iríamos abrir mão de nossos lugares, pois esses logo seriam ocupados pelos representantes da ditadura. Ficar era resistir, manter nossa bibliografia e dar aulas conforme programado. Na Universidade de Brasília foram afastados muitos professores e alunos. O pretexto da direita era quase sempre o mesmo: comunistas! Havia uma pluralidade de docentes, muitas orientações políticas e teóricas, alunos exuberantes e inovadores, mas a direita autoritária, usando as armas da ditadura, tinha muito medo do saber, sobretudo se crítico! Anos muito, muito difíceis, mas guiados por um ideal democrático. O preço foi alto, as marcas estão em todos nós e em nossos descendentes. Mas garantimos a liberdade do conhecimento.

Assim pensávamos…

Hoje, setembro de 2024, leio na imprensa que um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, convidado para a mesma Universidade de Brasília, foi proibido pelos estudantes de ministrar seu curso! O professor Jorge Gordin, com doutorado em Pittsburgh, que dera aulas na Austrália, na Argentina, entre outras universidades, com vasta produção intelectual internacional, foi ameaçado, se viesse dar um curso na Universidade de Brasília, uma universidade pública. Não foram os militares, mas os alunos que proibiram a vinda desse professor. A acusação: ele expressara opiniões a respeito do exército de Israel (opiniões antigas, anteriores à guerra contra o Hamas). Lembrei-me bem dos argumentos que a direita militarizada usava: bastavam entrevistas, comentários, amizades e até namoros para aposentar, torturar, afastar da docência. A direção da Universidade de Brasília, temendo maiores consequências, se sujeitou e cancelou a vinda do professor. Os estudantes exultaram com essa proibição!

Tem havido várias tentativas de controlar os caminhos científicos das universidades públicas. Na Unicamp, um grupo de docentes propôs romper acordos com o Technion, um Centro de Pesquisas de Israel, sob o pretexto de que esse instituto preparava armas de guerra! Na USP, um grupo de alunos propôs romper acordos com a Universidade Hebraica de Jerusalém, que seria ligada à produção para a guerra. Esses dois movimentos foram fartamente difundidos pelos proponentes junto à comunidade acadêmica e fora dela também. Foram meses de intranquilidade, disputas, artigos violentos e agressivos, alimentados por acadêmicos e políticos de esquerda! Uma inversão, agora os situados à esquerda usaram os mesmos métodos da direita para expurgar os oponentes!

Apresentados e examinados pelas instâncias acadêmicas que dirigem as respectivas universidades, essas concluíram que os convênios deveriam ser mantidos.

Não me lembro de interferências semelhantes, pelo menos no período democrático, visando impedir acordos com diversas universidades. O cenário da guerra entre Israel e o Hamas, somado à entrada de outros grupos e países no conflito, exorbita o confronto bélico e atinge a sociedade civil brasileira, especialmente o campo acadêmico e científico. Indiscutível que a guerra entre Israel e o Hamas tenha provocado emoções, justificadas pelas inúmeras mortes de mulheres e crianças na guerra nos dois lados. Some-se a comoção face aos sequestrados, diariamente assassinados.

A universidade pública, por mais difícil que seja, precisa garantir seu trabalho na perspectiva de longo prazo, superando os problemas quando surgem, buscando equilíbrio, se distanciando de soluções políticas temporárias. Analisando as posições em confronto, não é possível ignorar que as restrições atuais à ciência israelense vão além da guerra atual e rememoram o antigo antissemitismo trazido ao Brasil pelos colonizadores e alimentado pela igreja católica (pré-Concilio Vaticano II). Enfrentamos agora, estimulados por razões bélicas, um fértil campo para o antissemitismo. Ações antissemitas contaminam além da vida acadêmica, penetram nas relações sociais, estimulam agressões físicas e virtuais. A identidade judaica que até pouco tempo atrás era vista como uma característica “interesssante” dos judeus, hoje passou a ser uma marca de exclusão.

Essa análise não acaba aqui: parte de uma perspectiva micro focalizando um segmento da sociedade brasileira (as universidades). Vamos acompanhar nos próximos anos as ações no nível macro: o comportamento do contraditório e parcial governo federal, as câmaras e as instituições como o exército, entre outras. Vale analisar se vamos trazer para o Brasil as disputas do Oriente Médio ou vamos trabalhar para que eles e nós encontremos a PAZ.

Um agradecimento a Albertina Costa pela leitura crítica do meu texto.

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