Novo regimento da Câmara dos Deputados restringe espaço da oposição

Aprovado em nome da “eficiência”, dificulta o debate aprofundado dos projetos de lei que afetam a vida de milhões de brasileiros

 14/05/2021 - Publicado há 3 anos
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Fotomontagem: Jornal da USP

Para se entrincheirar no poder os governos… também precisam mudar as regras do jogo. Autoritários em busca de consolidar o seu poder com frequência reformam a Constituição, o sistema eleitoral e outras instituições de maneiras que prejudiquem ou enfraqueçam a oposição, invertendo o mando de campo e virando a situação de jogo contra os rivais. Essas reformas muitas vezes são levadas a cabo sob pretexto de algum benefício público, mas, na realidade, estão marcando as cartas do baralho em favor dos poderes estabelecidos. E por envolverem mudanças legais e mesmo constitucionais permitem que os autocratas consolidem essas vantagens durante anos e mesmo décadas.

A citação é do livro Como as democracias morrem, best seller do New York Times, escrito pelo sociólogo Steven Levitsky, diretor do Centro de Estudos Latino-Americano David Rockefeller, da Universidade de Harvard, e por Daniel Ziblatt, cientista político e professor em Harvard. A obra foi classificada pelo conhecido jornalista Fared Zakaria, da CNN, como “um livro perspicaz e muito bem fundamentado sobre como a democracia está sendo enfraquecida em dezenas de países – e de modo perfeitamente legal”.

Aqui, no Brasil, assistimos diariamente a movimentos do governo federal contra as instituições democráticas, sendo alvos preferenciais o Supremo Tribunal Federal e a oposição no Congresso, além de governadores que não rezam pela cartilha do Palácio do Planalto. A expressão “passar a boiada” já é um clássico para descrever as iniciativas para modificar estatutos e legislações que estabelecem regras de convívio social, econômico, trabalhista e, ultimamente ambientais, que garantem um modus vivendi justo, equilibrado, com proteção do direito de todos, em nossa sociedade.

O mais recente movimento nessa direção consolidou-se, nesta semana, no poder legislativo federal, o principal parceiro ou adversário do Executivo para a construção do ambiente legal do País. Trata-se do projeto de resolução aprovado na Câmara Federal, por 370 votos a favor e 110 contra, que muda o regimento interno para diminuir as ferramentas das quais a oposição pode lançar mão para obstruir, mas ao mesmo tempo, aprofundar os debates em votações. O projeto enxuga o chamado “kit obstrução”, amplamente utilizado por todos os partidos de oposição nos legislativos mundo afora. Introduz modificações em dez regras de um regimento detalhado e complexo que estabelece as regras dos duelos entre situação e oposição na discussão de projetos de lei, o que é especialmente necessário quando tratam de temas polêmicos e controversos.

“O projeto afeta um aspecto central da democracia. Não existe liberdade, possibilidade de avanço de reconhecimento dos direitos da população, se a oposição, a minoria, não tiver recursos regimentais para poder processar a sua opinião, a sua contestação do que faz a maioria”, diz o cientista político José Álvaro Moisés, diretor do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas da USP. “As regras que se estabeleceram limitam e calam a voz da oposição em vários sentidos.”

O objetivo de restringir o espaço da oposição nos debates foi reconhecido pelo presidente da Câmara, Arthur Lira: “A modernização do regimento interno vai qualificar o debate e aumentar – ao invés de diminuir – o tempo de discussão das matérias. Mas simultaneamente irá impedir a banalização da obstrução, um legítimo direito das minorias”, diz ele. A ele se soma o deputado Eli Borges, do Solidariedade de Tocantins, um dos autores do projeto: “Quando nós temos, ainda, um regimento que permite 16 requerimentos obstrutivos, 27 encaminhamentos em cada um desses requerimentos obstrutivos, vários debatedores contra e a favor, e, em média, cinco destaques ou mais em matérias importantes, nós temos a percepção de que, se adotado todo o procedimento obstrutivo, nós precisaríamos de 14 horas e 51 minutos para podermos aprovar uma matéria neste Parlamento”, disse. Será pouco para projetos que afetam, muitas vezes de maneira decisiva, a vida de milhões de brasileiros?

A resposta vem da deputada Maria do Rosário, do PT do Rio Grande do Sul: “A contradição não se dá no momento da discussão, se dá no momento em que a minoria tem o poder de fazer obstrução. A obstrução legítima, prevista no atual regimento, é o tempo para que a sociedade brasileira tome conhecimento das matérias”, rebateu. Na avaliação da deputada Fernanda Melchionna, do PSOL do Rio Grande do Sul, o objetivo do texto é dificultar os direitos de minorias. “Nossa assessoria revisitou as notas taquigráficas das sessões de votação dos projetos mais autoritários da ditadura, estudou todas as alterações regimentais dos últimos 30 anos que pudessem afetar o processo de obstrução, e não viu nada parecido nem de longe com isso que estão fazendo hoje”, afirmou.

“A forma como foi adotada a mudança do regimento interno da Câmara dos Deputados realmente parece indicar uma tentativa de minimizar a capacidade da minoria de fazer oposição. Assim, num contexto de polarização como o atual, a mudança do regimento visa a prejudicar a oposição”, diz Pedro Dallari, professor titular do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da USP. Acrescenta o professor de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), André Singer: “Trata-se de uma medida claramente restritiva no sentido de prejudicar a oposição e com isso um maior teor democrático nas decisões tomadas pela Casa”. Os defensores das modificações alegam que elas foram adotadas em nome da “eficiência” do desempenho do poder legislativo. Cabe perguntar: eficiência é rapidez, ou analisar e debater todas as implicações de um projeto de lei e acolher todas as sugestões que equilibram socialmente os resultados de sua aplicação?

A Câmara Federal nem precisou dessa mudança de regimento para aprovar, também nesta semana, outra passagem de boiada: uma nova legislação ambiental, que afrouxa as atuais regras para a aprovação de projetos de construção de todos os tipos, de minerações, de instalação de indústrias, que chega ao cúmulo de delegar aos próprios proponentes e executores a análise dos seus impactos ambientais nas regiões onde serão instalados. O projeto ainda precisa ser aprovado pelo Senado Federal para entrar em vigor. Lá, onde diariamente o calor da CPI da Covid-19 aumenta as dores de cabeça do governo, espera-se que o espírito reinante impeça a sua aprovação definitiva. Mas essa é outra história, que fica para uma outra vez…

*Com a colaboração de Cinderela Caldeira e informações dos jornais Folha de S.Paulo, O Tempo, de Belo Horizonte, e do portal G1.


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