Iniciativas culturais precisam de tecnologia livre para se desenvolver, defende pesquisa

Tese de doutorado da ECA mostra impacto do uso dos softwares livres na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, posterior desmonte dessa política e o cenário atual

 25/09/2019 - Publicado há 5 anos
Gilberto Gil esteve à frente do Ministério da Cultura de janeiro de 2003 a julho de 2008 – Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil

Ao propor o uso de tecnologias livres, o Ministério da Cultura, sob a gestão de Gilberto Gil (2003-2008), permitiu uma apropriação social da informação. Não foi exclusividade desse Ministério usar os softwares livres, mas seu impacto para o âmbito das artes foi de extrema relevância. Essa é uma das conclusões de Ana Carolina Silva Biscalchin, autora de tese de doutorado defendida na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.  Em seu trabalho, a pesquisadora também aponta o progressivo desmonte dessas políticas, a partir de 2013, mas ressalta que o legado delas não se perdeu por completo.

“Sou ministro, sou músico, mas sou sobretudo um hacker em espírito e vontade.” Essa frase é dita por Gilberto Gil em 2004, ano em que iniciava o programa dos Pontos de Cultura, associados aos softwares livres. A inovação proposta pelo então ministro foi um marco para a história das políticas culturais brasileiras, já muito atreladas à tecnologia.

A tese de Ana Biscalchin revisita o período em que o Ministério da Cultura esteve sob a gestão de Gil. À época, a visão do órgão era mais abrangente, trabalhava em mais frentes “do que apenas financiar projetos”, comenta a pesquisadora em Ciências da Informação.

Isso porque as medidas propostas por Gil eram um tanto quanto revolucionárias. O apoio aos Pontos de Cultura – entidades sem fins lucrativos que desenvolvem atividades culturais em suas comunidades – não só permitia o desenvolvimento de diferentes esferas da arte, mas também ajudava projetos de diferentes portes a crescer.

Qualquer iniciativa, fosse ela na periferia ou nos grandes centros, podia ser contemplada pelos editais lançados pelo Ministério. Segundo Ana Biscalchin, a ideia era “democratizar o processo para que não se restringisse sempre aos mesmos produtores de cultura”.

A visão da administração era a de realmente criar uma rede de colaboração entre os Pontos de Cultura apoiados, de modo que as atividades culturais não ficassem exclusivamente dependentes do governo. Uma mão lavava a outra. Mas no bom sentido.

Hacker x cracker – Em informática, hacker é alguém que se dedica a conhecer e modificar dispositivos, programas e redes, obtendo muitas vezes soluções e efeitos que extrapolam os limites dos sistemas previstos por seus criadores. Cracker é o termo mais adequado para designar quem pratica quebra de sistemas de segurança de forma ilegal – Foto: Matthew (WMF) via Wikimedia Commons / CC BY-SA 3.0

E onde entram os softwares livres?

Para entender melhor essa história, é necessário definir alguns conceitos. É preciso até mesmo entender um pouco da cultura hacker. Diferente da imagem criada pelo senso comum, os hackers não são necessariamente pessoas de má índole que desejam roubar os dados de seu cartão de crédito por meio de vírus enviados pela internet.

A filosofia hacker surgiu ainda nos anos 60 e tinha como mote a ideia de que a tecnologia era para todos. Isso significa que o desenvolvimento de ferramentas não deve se restringir a meia dúzia de programadores, fechados em uma sala. “Aprender a manipular seu próprio software é uma forma de inclusão digital”, comenta a pesquisadora.

Ao abrir um software para a comunidade, deixando-o livre, é possível que cada um adapte o programa às suas necessidades. Um artista digital, por exemplo, pode desenvolver um novo pincel, necessário para seu trabalho. Além disso, esse tipo de software tem menos restrições de reprodução. O que significa que não são cobrados altos preços para o uso daquela tecnologia.

Para a cultura, o uso dessa tecnologia é extremamente impactante por diversas razões. A liberdade para adaptação é um dos benefícios, mas o maior deles é definitivamente o custo. “Para grandes empresas, pagar licenciamento de software não é um grande custo, mas, para pequenos projetos, faz diferença”, explica Ana Carolina.

Pegando um exemplo clássico, o Pacote Office, muito usado em funções administrativas, tem um custo elevado. Alternativas como o LibreOffice, no entanto, tentam suprir essa necessidade, trazendo uma ferramenta gratuita e com funcionalidade semelhante.

Centro de Teatro do Oprimido, no Rio de Janeiro, selecionado em edital dos Pontos de Cultura em 2010 – Foto: Divulgação CTO

Cenário atual

A partir de 2013, começa o desmantelamento de políticas públicas culturais que permitiam uma apropriação social da informação, avalia a pesquisadora.  Hoje, a democratização da cultura caminha a passos lentos. “Em minha tese, conto a história de um desmonte de uma política pública que foi muito interessante e inovadora, mas que depois vai sendo descontinuada por conta da ingerência política.”

No entanto, o legado do que foi feito não se perdeu.

Projetos como o Fab Labs da Prefeitura de São Paulo utilizam desse recurso para promover a criatividade e a inovação na cidade. Além disso, muitos dos Pontos de Cultura beneficiados à época de Gil ainda estão em atividade e ajudam uns aos outros. Hoje eles estão unificados na Política Nacional de Cultura Viva, criada por lei em 2014. A legislação ainda representa um marco histórico, por estimular a produção cultural e apoiar iniciativas dotadas de menos recursos financeiros.

“Não é uma história totalmente negativa. Muitas pessoas que foram formadas nessa época na questão do software livre ficaram com esse conhecimento e continuaram com essa rede de apoio”, diz Ana Carolina.

A tese Apropriação social da informação, cultura e tecnologia: software livre e políticas culturais no Brasil teve orientação do professor da ECA Marco Antonio de Almeida e está disponível na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP.

Maria Eduarda Nogueira/Laboratório Agência de Comunicação da ECA


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