Resistência e ancestralidade afro-indígenas em destaque no Teatro da USP

Cia. São Jorge de Variedades comemora 25 anos com temporada de “Festa dos Bárbaros” no Tusp, que recebe também oficina e exposição do acervo da companhia

 06/09/2024 - Publicado há 1 mês
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foto: Cacá Bernardes

O Teatro da USP recebe até 6 de outubro uma ocupação que traz de volta a São Paulo a Festa dos Bárbaros, que tem na direção um trio de mulheres: Georgette Fadel, Patrícia Gifford e Paula Klein Flecha Dourada.

A Cia. São Jorge de Variedades é um projeto coletivo iniciado em 1998 com integrantes oriundos da Escola de Arte Dramática (EAD) e da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP que, desde sua fundação, pautou-se por um processo de lapidação da cena bruta por meio de artifícios e procedimentos simples e artesanais, apoiado no interesse social da arte e em referências múltiplas conforme cada espetáculo – mas, principalmente, em manifestações ritualísticas de canto e dança, tendo por referência as religiões afro-brasileiras, tratando como tema principal a discussão de questões éticas inerentes à diversidade e a função social da arte.

Ao mesmo tempo, o saguão do Edifício Rui Barbosa do Centro MariAntonia recebe a exposição itinerante São Jorge 25 Anos, que teve projeto e execução de Julio Dojcsar e coordenação geral de Rogério Tarifa, reunindo materiais do acervo da companhia –como desenhos, publicações, objetos de cena, maquetes e figurinos–, além da realização de uma oficina gratuita, cujos participantes complementarão e participarão da temporada do espetáculo como público brincante, vivenciando os pilares de construção da linguagem da companhia.

A criação de Festa dos Bárbaros parte de pesquisa sobre ancestralidade, tempo mítico, sabedoria e resistência dos povos originários e afro-indígenas no território brasileiro e se estrutura a partir da Revolta dos Bárbaros, guerra que por mais de 70 anos envolveu diversas etnias indígenas em confronto com colonizadores no sertão nordestino, e a cosmologia da Jurema Sagrada, árvore da caatinga que, para diversos povos indígenas, é guardiã da cultura e da ciência, em rituais de cura e de conexão com a ancestralidade.

No espaço cênico da praça em frente ao teatro, o público acompanha a história da fuga de um casal cujo homem é acusado de assassinar um policial. Na fuga, fazem uma peregrinação até encontrar uma região de mata, onde se deparam com Malunguinho, entidade sagrada dos terreiros de Jurema que caminha pelos três mundos. A partir de então, o casal é apresentado aos aspectos sagrados, profanos, culturais e identitários da planta, em celebração com o público e em cruzamento com a geografia local.

Para Paula Klein Flecha Dourada, o ponto de partida da Jurema Sagrada e da luta dos povos originários busca instaurar novos pontos de vista sobre a realidade. “O espetáculo aborda muitos outros assuntos relacionados ao sagrado e ao profano, à ancestralidade, ao respeito à multiplicidade da vida, à luta por dignidade e respeito às diferenças, à instauração de modos coletivos de sobrevivência, à celebração da vida, à afirmação de identidades e culturas minoritárias e excluídas”, explica a diretora e atriz.

Cantos e narrativas

A música é um dos pilares dramatúrgicos e parte fundamental da encenação. A pesquisa realizada pelos integrantes do grupo sobre a Jurema encontrou uma infinidade de canções, cantadas nos cultos e presentes na cultura popular, e que fazem parte do espetáculo, que contempla também a música indígena e afro-brasileira, o uso do maracá como instrumento, além de novas composições e adaptações, já que grande parte da trilha é cantada em coro.

A cenografia se compõe por uma série de mesas que formam um cruzeiro e uma árvore da jurema – além de uma cobra de 20 metros. Segundo a atriz e diretora Patrícia Gifford, através da proposição desse projeto, o que se deseja é criar uma obra cênica capaz de trazer à memória os saberes de alguns desses povos originários. “A despeito da tentativa colonial de promover sua adequação ao mundo do trabalho, à conversão à fé cristã católica e uma educação aos moldes das sociedades ditas civilizadas, não se conseguiu forjar o completo apagamento dos elementos e práticas culturais identitárias. Esperamos que este novo trabalho seja uma forma de louvação à nossa ancestralidade indígena, que a história oficial teima em esconder”, argumenta ela.

Sobre a Jurema Sagrada

Crença e fé de muitos povos originários brasileiros, a Jurema Sagrada, ou Catimbó, pode ser considerada a primeira religião brasileira. Guardada a diversidade de experiências de cada povo indígena e, posteriormente, as confluências com religiosidades africanas e cristãs, ela se caracteriza pela sagração da árvore da Jurema, muito presente no Nordeste, e o uso de suas raízes, folhas, frutos e tronco em rituais cantados em que se faz presente o uso do cachimbo, da fumaça e do maracá.

Foto: Cacá Bernardes

Celebrando a história dos encantados e a indissociável relação da vida e cultura com a natureza, são contadas/cantadas histórias de mestres e mestras, reis, rainhas e caboclos sertanejos, que perpetuam e presentificam narrativas de existência e luta, salvaguardando os saberes desses povos diversos. As entidades da Jurema pertencem à história do Brasil, e vão desde figuras populares e marginalizadas até reis e rainhas, como Reis Malunguinho – figura do líder João Batista, do Quilombo de Catucá, no Recife, entre outras lideranças quilombolas –, Reis Canindé –liderança do povo indígena de mesmo nome que vive nos municípios de Aratuba e Canindé, no Ceará – e Mestra Maria do Acais – vidente, conselheira e curandeira da cidade de Alhandra, na Paraíba.

Sobre a Revolta dos Bárbaros

Ocorrida entre os anos de 1650 e 1720, envolveu os colonizadores e os povos nativos chamados Tapuia e teve como palco os sertões nordestinos, desde a Bahia até o Maranhão. Embora tenha tido longa duração e tenha sido contemporânea à existência do Quilombo dos Palmares, o conflito pouco aparece na historiografia. Sua omissão nos livros didáticos e os raros estudos sobre o episódio revelam o pouco relevo dado ao tema da resistência indígena e ao violento processo de conquista lusitano no sertão nordestino.

A denominação Tapuia, dada pelos cronistas da época e perpetuada pela historiografia oficial, referia-se a grupos indígenas com diversidade linguística e cultural que habitavam o interior, em distinção aos Tupi, que falavam a língua geral e se fixaram no litoral. Estudos atuais mostram que esses povos pertenciam a grupos culturais como Jê, Tarairiu, Cariri e grupos isolados e sem classificação –como os Sucurú, Bultrim, Ariu, Pega, Panati, Corema, Paiacu, Janduí, Tremembé, Icó, Carateú, Carati, Pajok, Aponorijon e Gurgueia.

Designados “bárbaros” pelos colonizadores, esses nativos habitavam a região e ofereciam resistência à ocupação do território. Tidos como selvagens, bestiais, infiéis, traiçoeiros, audaciosos, intrépidos, canibais, poligâmicos, eram enfim “índios-problema”, que não se deixavam evangelizar e civilizar.

Essa imagem reforçou os argumentos do conquistador de uma “guerra justa” para extirpar os “maus” costumes nativos, satisfazendo tanto a necessidades de mão de obra pelos colonos quanto à garantia aos missionários do sucesso na imposição da catequese, o que resultou na criação de dispositivos legais que legitimaram uma guerra de extermínio. Isso se confirma em documento datado de 1713, quando os povos nativos já estavam drasticamente reduzidos ou aprisionados e aldeados, no qual o governador de Pernambuco insiste ser “necessário continuar a guerra até extinguirem estes bárbaros de todo, ou do menor, ficarem reduzidos a tão pouco número que ainda que se queiram debelar o não possam fazer”.

Sobre a Cia. São Jorge de Variedades

Formada há 25 anos por integrantes dos cursos de Artes Cênicas da USP, o grupo visa estabelecer, por meio de investigações permanentes, um processo de lapidação da cena bruta a partir de procedimentos simples e artesanais. Pedro o Cru, de 1998, seu primeiro espetáculo, é uma montagem do poema dramático do escritor português António Patrício. Em 1999, monta Um Credor da Fazenda Nacional, resgatando a obra de José Joaquim de Campos Leão, o Qorpo-Santo. A partir de 2001, o grupo reforça o vínculo com a cidade, ocupando por dois anos o Teatro de Arena, onde, em parceria com o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos, o Grupo Teatral Isla Madrasta e a Cia. Bonecos Urbanos, desenvolve o projeto Harmonia na Diversidade e encena Biedermann e Os Incendiários, de Max Frisch.

A preocupação com a função social da arte e suas possibilidades trouxe o envolvimento com iniciativas públicas para pessoas em situação de rua, como a Oficina Boracea e o Albergue Canindé. Nesse contexto, entre 2002 e 2004 nasce As Bastianas, a partir da coletânea de contos de Gero Camilo. Em 2007 acontece a montagem de O Santo Guerreiro e o Herói Desajustado, vencedor do Prêmio Shell de melhor figurino, com direção de Rogério Tarifa e 20 atores em cena. É de 2009 o espetáculo Quem Não Sabe Mais Quem é, o Que é e Onde Está, Precisa se Mexer, ganhador da categoria especial do Prêmio Shell de Teatro pela pesquisa e criação. A companhia também produz desde 2003 o fanzine São Jorges – canal de interlocução de uma geração estimulada a contracenar com a cidade de outra maneira.

Em 2010 a Cia. foi contemplada pelo Programa Petrobras Cultura e em 2012 estreou o espetáculo Barafonda, com quatro horas de duração e um percurso de dois quilômetros pelo bairro da Barra Funda. O espetáculo foi vencedor nas categorias Dramaturgia, Direção e Trabalho apresentado em Rua do Prêmio Cooperativa Paulista de Teatro, além de receber indicações ao Prêmio Governador do Estado de São Paulo como melhor espetáculo e Prêmio Shell 2012 na categoria especial pela montagem e criação. Em 2014 a Cia. se aventura pela primeira vez numa experiência artística voltada a crianças e seus familiares, com a estreia do espetáculo infantil São Jorge Menino, com texto de Ilo Krugli. No mesmo ano estreia Fausto, de Goethe, no Mirada – Festival Internacional Ibero-Americano de Teatro, indicada ao Prêmio Shell de Melhor Música. Em 2017 surge Afinação I, solo de Georgette Fadel, atriz, diretora e fundadora da Cia. Mais recente espetáculo do grupo, Festa dos Bárbaros teve sua estreia em 2022, reunindo um elenco de 24 artistas. A peça foi contemplada no edital 18/2023 de Manutenção de Atividades da Lei Paulo Gustavo de São Paulo.

A temporada é gratuita e acontece aos sábados (15h) e domingos (14h), até 6 de outubro, contando com Libras e audiodescrição em todas as sessões.

 

Festa dos Bárbaros | Cia. São Jorge de Variedades
De 7 de setembro até 6 de outubro
Sábados às 15 horas e domingos às 14 horas
Tusp MariAntonia – Rua Maria Antônia, 294 – Vila Buarque
150 minutos | Livre | Gratuito
Distribuição de ingressos 1 hora antes da sessão, sujeito à lotação do espaço
Audiodescrição e Libras em todas as sessões. Reservas de equipamento de audiodescrição com Adamy (11 9990-72370)


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