
Atravessar a Praça da Sé. Olhar o trânsito das pessoas na região. Ouvir as sanfonas, bumbos, o sino da catedral, pregadores religiosos, vendedores de bilhetes de loteria. A atenção a esse cotidiano certamente vai levar à arte de Giselle Beiguelman. As imagens e videoinstalações que estão na mostra Cinema Lascado, na Caixa Cultural São Paulo, conversam com o centro de São Paulo. E registram uma década de trabalho da artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP observando as metrópoles de várias partes do mundo.
Como uma paulistana que nasceu e cresceu às margens do Minhocão, Giselle se deixou envolver pelos sons e imagens da cidade. “Eu procurei trazer essa memória do trânsito dos carros, das luzes, da paisagem dos prédios em vídeos e fotos”, conta a artista. “Também registrei a extinta Perimetral, no Rio de Janeiro. São enormes vias elevadas que evidenciam as cicatrizes do tecido urbano das duas metrópoles.”
O resultado da edição das imagens dessas duas vias elevadas faz com que o espectador passeie por cima e por baixo do Minhocão, além de poder assistir e ouvir o momento da implosão da Perimetral. Giselle tratou as imagens em programas de animação já obsoletos, criando obras que transitam entre o low-tech e o hi-tech.

Todo esse registro deu nome à mostra Cinema Lascado, que tem a curadoria de Eder Chiodetto, fotógrafo e mestre pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. “Conheço Giselle há dez anos e, desde então, quando nos encontrávamos, falávamos da ideia deste projeto”, explica. “Percebi a potência do trabalho desde aquela época, quando notei a forma como a artista rearticula a estrutura interna das imagens, criando abalos sísmicos na combinação binária que forma os arquivos digitais, que resultam numa provocativa e renovada estética, em novos horizontes de poéticas possíveis.”
Chiodetto conta que a artista desprograma a caixa-preta que os engenheiros constroem. “Dessa forma, ela faz, ao mesmo tempo, uma crítica original à obsolescência dos aparatos tecnológicos e às novas formas de comunicação que alteraram completamente o nosso padrão de comportamento nessa virada de século. Quando essa crítica, com humor e perspicácia, gera também um projeto estético potente, parece-me que as pontas todas se amarram para configurar então uma obra de arte enfática e muito propícia para o atual momento do mundo.”
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Imagens poéticas
Ao lado dos trabalhos inéditos, há cinco séries iniciadas em 2006, Fast/Slow Scapes, com vídeos curtos gravados por Giselle. “As imagens foram capturadas em Berlim, Grécia, Nova York, São Paulo, Ilha de Paros e no mar Egeu”, conta Giselle. “Filmei com a câmera de celular de dentro dos carros, ônibus, barcos e trens.” Esses trabalhos estão pelo espaço e o visitante pode ver e acompanhar os sons com um fone de ouvido. As imagens da Ilha de Paros e do mar Egeu são poéticas, fluidas. E todos têm uma trilha sonora composta especialmente para cada um deles.

A artista consegue transformar os vídeos de decolagens e aterrissagens nos aeroportos de Congonhas, em São Paulo, e Santos Dumont, no Rio de Janeiro, em paisagens contemporâneas. São luzes que se revelam em quadrados coloridos. “As cores dominantes e o som convertem o movimento em texturas e volumes”, explica Giselle. Uma viagem que a artista proporciona ao espectador, com cenas causadas pela trilha da luz sob o movimento da aeronave. Surpreende também a série inédita Deserto Rosso. “Aqui eu faço uma referência ao filme homônimo de Michelangelo Antonioni”, observa. “Capturei as imagens em um depósito municipal, em São Paulo. São computadores, impressoras e outros equipamentos fora de uso. Com essas imagens, questiono a descartabilidade dos equipamentos digitais e as suas relações com a incomunicabilidade. São as ruínas urbanas.”
Velocidade do contemporâneo

Na exposição de Giselle, a filósofa Regina Favre observa atentamente todas as séries. “Ela mostra o uso da tecnologia com a velocidade do contemporâneo. E tem muito a ver com o meu trabalho.” Regina é organizadora do Laboratório do Processo Formativo, um site em que reflete questões pontuais da sociedade atual. “Esta mostra sugere uma reflexão importante sobre o ambiente urbano, seus sons, ruídos e o olhar sobre a cidade.”
A artista Lucimar Bello também aponta a dinâmica criativa de Cinema Lascado. “Eu trabalho com vídeo e imagens, e gostei de acompanhar as séries com o fluxo de imagens e sons.” Para a educadora Sandra Cavaletti, as mostras da Caixa Cultural humanizam o centro da cidade. “As exposições são convidativas e trazem um encantamento. Mostram a realidade da cidade sob um olhar diferenciado.” Como bem lembra o curador Eder Chiodetto, “ver Cinema Lascado e sair andando pela Praça da Sé é quase como não sair da exposição”.
A exposição Cinema Lascado, de Giselle Beiguelman, com curadoria de Eder Chiodetto, fica em cartaz até 25 de setembro, de terça-feira a domingo, das 9h às 19h, na Caixa Cultural São Paulo (Praça da Sé, 111, centro, em São Paulo). Entrada grátis. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 3321-4400.
Assista abaixo ao documentário sobre a exposição Cinema Lascado, de Giselle Beiguelman, produzido pela TV USP.