Livro de contos retrata dramas, revoltas e conflitos do cotidiano

Professor da USP Waldenyr Caldas lança “Rua da Justiça”, que reúne 12 histórias de ficção

 01/03/2021 - Publicado há 3 anos
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Uma rua de cem metros, pavimentada com paralelepípedos, sob um silêncio que contrasta com a agitação dos arredores da metrópole paulista. Casas antigas, todas idênticas, com portas estreitas, altas e entreabertas. Quem passa por lá tem dificuldade de comentar o que ocorre ali, assim como seus moradores, que permanecem todos sentados em torno de mesas redondas, no escuro, cochichando. É sob essa atmosfera misteriosa e atraente, bela e sinistra, que se ambienta o conto Rua da Justiça, narrativa que inicia e dá nome ao mais novo livro lançado por Waldenyr Caldas, professor titular da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. A obra, publicada pela Editora CRV, reúne 12 contos escritos pelo professor. Neles, Caldas mistura cotidiano e ficção em narrativas envolventes, que refletem a condição humana em jogo com as relações sociais e com o Estado.

Capa do livro Rua da Justiça, de Waldenyr Caldas – Foto: Reprodução

Para elaborar esse conto, Caldas explica que pensou no conceito de justiça como existe hoje e no papel do Estado no reconhecimento dos direitos dos cidadãos, diante do descrédito que os órgãos oficiais vêm sofrendo. Na trajetória de Mariano, personagem principal, ao longo da rua, o ambiente de desesperança e impotência conduz a discussões sobre a realidade da Justiça brasileira. No decorrer da narrativa, um dos personagens questiona de modo direto a efetividade desse sistema em referência à clássica figura da deusa da justiça, Thêmis, segundo a mitologia grega: “Os pratos da balança, símbolo da justiça, se desnivelam. Seguramente, uma das partes poderá contratar um bom e caro advogado para defendê-lo, apresentando ‘provas irrefutáveis’ da inocência e da probidade do seu cliente.” 

“Será que a justiça é realmente cega? Me desculpe Thêmis, mas a venda nos olhos já não simboliza a imparcialidade e a justiça”, questiona Caldas, em entrevista ao Jornal da USP. Segundo o professor, o ideal seria que essa mesma justiça mantivesse seus olhos bem abertos e atentos para a realidade dos fatos. Para ele, os fatos mostram que a burocracia do Estado tem se mostrado inoperante e, por conta disso, o que se tem visto diariamente no cotidiano das pessoas é o emperramento burocrático dos seus direitos. “Isso as leva a se submeter a condições humilhantes à procura de uma justiça que se torna cada vez mais distante de todos nós, sem que o Estado reaja a essa situação tão caótica”, completa. Esse incômodo de Caldas é refletido em cada página, no desencadear da narrativa. Como questiona um personagem de um dos contos: “Onde está a tão alardeada democracia da Constituição de 1988?”. 

“Em todos os contos, há um conjunto de fatores que acontecem em nosso cotidiano que nos leva a uma série de alterações de comportamentos bons e ruins”, destaca Caldas. Para ele, a dúvida, a incerteza, a insegurança, a arrogância das pessoas más são questões que dizem diretamente à condição humana da vida e esses fatores têm interferência nos momentos em que há decisões a serem tomadas, nos momentos do cotidiano em que uma informação inesperada pode mudar a vida para melhor ou para pior. A questão, para o professor, é que nem sempre sabe-se qual a melhor decisão, e não há tempo para pensar muito sobre ela.

Essas questões acerca da vida motivaram Caldas a começar a escrever a obra em 2014, terminá-la em 2019 e efetivamente disponibilizá-la ao público neste ano. O professor lembra que buscou conhecimentos no campo da teoria literária para escrever o livro. Focado em teorias do conto literário, ele se debruçou nos textos dos escritores Edgar Allan Poe, Julio Cortázar e Wolfgang Kayser, que deram grandes contribuições para esse gênero. “Essas leituras foram de grande valia para mim, e ajudaram a nortear minha intenção de escrever os contos presentes em Rua da Justiça”, afirma. 

O professor Waldenyr Caldas, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP – Foto: Arquivo pessoal

 

Em outro conto, O Morto e suas Roupas, a figura central é um competente jornalista de uma grande empresa de comunicação. Élcio de Almeida Santos é simultaneamente admirado e invejado pelos seus colegas de trabalho. Porém, ele morre muito cedo, aos 46 anos, o que propõe discussões sobre o que a morte tem a ensinar sobre a igualdade entre as vidas. “O tempo não envelhece, mas nos leva embora. Alguns irão mais cedo, outros mais tarde, mas todos irão.” O que há de mais interessante nesse conto, na visão do professor, é exatamente o momento de despedida de Élcio, com suas roupas muito coloridas, quando se ouvem  canções durante a cerimônia de cremação de seu corpo.

No conto João Dente de Ouro há uma reflexão sobre a carreira universitária. Numa narrativa descontraída, João é um professor de Teoria Geral do Estado, também especializado na estética do filósofo alemão Georg Friedrich Hegel, mas a visão da comunidade acadêmica sobre ele é contraditória: embora conceituado, é condenado pelo uso de roupas e acessórios pouco convencionais. O dente de ouro é um desses atributos estéticos que fazem com que seja visto como um cafona de mau gosto, ao mesmo tempo em que é tido como respeitado intelectual. “Isso, porém, não o incomodava e até era motivo para se divertir com as opiniões”, diz Caldas.

Os contos presentes em Rua da Justiça pertencem a uma linha temática que explora os dramas existenciais, os conflitos de ordem psicológica, a revolta e a insatisfação perante as condições de miséria e impotência. Apenas um deles se destaca por fugir dessa direção: Entre os Pássaros. Nele, uma jovem viaja até o reino dos pássaros em forma de semideusa e, ao retornar, esbarra no samba Sinal Fechado, de Paulinho da Viola. De acordo com Caldas – um especialista em cultura popular brasileira -, trata-se de uma narrativa bem leve, onde a beleza e a sensibilidade estão presentes em um relacionamento entre os seres humanos e os pássaros. “Em vez de poemas ‘do mais alto nível’, Waldenyr faz a ponte com letristas da música popular”, comenta o professor Moacir Amâncio, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que assina o prefácio do livro

Rua da Justiça, de Waldenyr Caldas, Editora CRV, 214 páginas, R$ 45,00 (livro impresso), R$ 37,03 (livro digital)


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