No começo do século 19, inicia-se uma forte migração do campo para cidades na França, na Inglaterra, de modo que Londres e Paris são muito modificadas, a população cresce muito e cresce muito com pobreza. A historiadora Maria Stella Bresciani tem um belo livro a respeito, que se chama Londres e Paris no Século XIX. O Espetáculo da Pobreza. A miséria começa a ser vista, começa a ser enxergada, ela começa a ter uma presença mais importante na cidade. Claro que havia miséria antes, mas o volume do êxodo rural cresce, a industrialização requer mão de obra e essa mão de obra forte, que surge com a industrialização, é uma mão de obra que não custa nada para o patrão, ele não teve que bancar nada da formação dessa mão de obra, uma vez que eles foram criados no campo por suas próprias famílias e já chegam prontos para trabalhar na cidade com uma mão na frente outra atrás, então é a miséria que se mostra presente.
É bom sempre distinguir miséria e pobreza. Miséria é quando você não consegue sequer a sobrevivência com a renda que você tem, você vai definhando, vai morrendo aos poucos, o miserável tem uma expectativa de vida mais baixa, mais doenças etc. Já na pobreza, a pessoa não consegue poupar, ela não vai conseguir comprar uma casa, dificilmente um carro, a gente vê hoje no Brasil que as pessoas mais pobres compram carros usados, bem velhos. Mas de qualquer forma, no caso da pobreza, é como se a pessoa vivesse “da mão para a boca”, como diz o velho ditado, e na miséria a pessoa nem isso.
Então, o que nós temos no século 19 é essa situação da miséria e outra coisa ainda, também muito interessante, é que miseráveis e ricos começam a se olhar. Os ricos veem a miséria e ficam horrorizados, não com as condições sociais que geraram isso, mas com o fato de terem miseráveis na frente, daí uma série de recursos, inclusive urbanistas e arquitetônicos, para poupar os ricos do risco de verem essa pobreza, que é chocante. Por outro lado, uma passagem muito interessante de Victor Hugo, por volta de 1840, quando o futuro grande escritor ainda era bem ingênuo, bem monarquista, bem a favor do status quo, em que ele vê um pobre olhando para um rico e nota que, nesse olhar do pobre para o rico, que está entrando numa carruagem […] e a reação do homem, que mais tarde escreverá Os Miseráveis e será um dos grandes conhecedores da miséria é: como que o pobre não percebe que é a riqueza do outro que lhe dá emprego, que lhe dá trabalho, que lhe dá vida.
O que o próprio Victor Hugo não percebe é que está surgindo uma coisa muito importante na convivência democrática – a democracia é algo recente, algo novo depois de um intervalo de quase 2 mil anos entre a Grécia e a modernidade -, está surgindo uma sensação de igualdade e, em função disso, uma revolta: “Como é que o outro tem tudo isso e eu tenho tão pouco? Como eu estou morrendo de fome e o outro está gastando dinheiro em coisas fúteis, luxuosas?” Então, esse choque do luxo e da miséria, um olhando o outro, é bem flagrante.
No Brasil, eu pegaria só uma imagem, que causou um certo escândalo anos atrás, quando uma senhora na Bahia […] posou sentada numa cadeira muito chique ao lado de duas mulheres negras que trabalhavam para ela. A imagem causou muito choque e muita discussão […] e era chocante porque ela naturalizava uma desigualdade flagrante. Parecia um trono aquele lugar e lembrava as imagens do pintor Debret, que mostra os negros carregando um fidalgo numa liteira, no começo do século 19, no Rio de Janeiro. Então, esse olhar recíproco da miséria e do luxo é um fator de explosão social, é isso que eu acho que era importante chamar atenção e apontar os problemas que isso traz, sociais e éticos.
Ética e Política
A coluna Ética e Política, com o professor Renato Janine Ribeiro, vai ao ar quinzenalmente, quarta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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