Em novembro de 2017, a obra Salvator Mundi quebrou o recorde de obra mais cara já vendida em um leilão no mundo. A pintura, atribuída a Leonardo da Vinci, foi comprada por uma “bagatela” de US$ 450 milhões em um leilão da Christie’s. Hoje pertence ao príncipe da Arábia Saudita Mohammed bin Salman. Desde que foi “descoberta”, vem gerando dúvidas nos historiadores da arte e restauradores, que ainda não entraram em um consenso sobre sua autoria.
A atribuição ao grande mestre renascentista ainda é questionada, ainda mais por ter sido primeiro adquirida em um leilão pequeno em Nova Orleans e por estar em péssimas condições quando foi encontrada. Além disso, não se sabe ao certo de onde a obra veio, já que ficou desaparecida por quase 200 anos. Porém, muitos defendem que essa obra seja mesmo feita por Da Vinci, por conta das técnicas utilizadas, como o sfumato, enquanto outros não concordam.
Esse é um exemplo que salienta o papel da catalogação e da identificação de obras de arte: saber sua autenticidade, o período em que foi feita, quais materiais foram utilizados e de quem é a autoria. Essa identificação é importante para a montagem de um catálogo sobre os artistas, manter o controle sobre as obras, conservá-las e restaurá-las da melhor forma possível e evitar fraudes. O mercado de falsificação de obras é altamente lucrativo e não é de hoje que há a falsificação de obras de artistas muito famosos.
Identificar uma obra requer um alto nível de conhecimento sobre o artista, as técnicas, a história da arte e até mesmo a dos pigmentos utilizados. O processo ainda conta com uma equipe interdisciplinar, composta de restauradores, historiadores da arte, químicos e equipes de análises laboratoriais. Toda a obra passa por uma análise profunda, que vai desde analisar a madeira da moldura a rasgos imperceptíveis a olho nu na tela.
“A gente costuma fazer alguns exames identificando pigmentos que a obra tem, lacunas para identificar a base de preparação, também a madeira do chassi ou algum dado sobre a moldura. Então, a gente vai formar um grupo de informações ligando essa pintura à sua época”, explica Yara Petrella, restauradora do Museu Paulista da Universidade de São Paulo, o Museu do Ipiranga.
Etapas e instrumentos utilizados
As etapas necessárias para a identificação incluem uma pesquisa de proveniência, que descobre de onde a obra pode ter vindo; análise visual, que procura por padrões e características próprias do artista; e fotografia e análise ultravioleta, que são usadas para identificar diferentes camadas de tela ou pinturas por baixo da que aparece na superfície.
“É muito comum a gente identificar pigmentos, por exemplo, pela [espectroscopia de] Raman, identificar a substância do pigmento”, diz a restauradora. Além do Raman, há ainda a microscopia com luz polarizada, a espectroscopia de infravermelho (FTIR), a fluorescência, difração e a espectroscopia de raios X.
A fluorescência de raios X é uma forma de detectar os pigmentos usados, o que permite localizar a época em que uma obra foi pintada, se precisa de retoques e até detectar possíveis falsificações. Isso é possível porque a maioria dos pigmentos já tem uma cronologia bem definida, o que facilita identificar o local de onde aquele pigmento é proveniente.
“Os pigmentos começaram desde a Idade Média, por exemplo, sendo manipulados pelos pintores. Conforme foi passando o tempo, eles foram descobrindo uma cor ou outra, como manipular para obter a tinta, até chegar na industrialização de pigmento de origem orgânica e depois passar para pigmentos sintéticos, já no século 20, fabricados no laboratório”, explica Yara.
Esse conhecimento consegue diferenciar pinturas falsificadas das originais, uma vez que a cópia pode utilizar pigmentos apenas obtidos por meio da industrialização, o que não corresponde, por exemplo, aos pigmentos naturais usados séculos antes.
Cada caso é um caso
Essas ferramentas, porém, não são um procedimento rígido, ou seja, não são estritamente seguidas. Cada caso é único, e cada obra requer um procedimento e um saber anterior para facilitar essa identificação. “É um esforço de reunir o maior número de informações possíveis sobre como o artista faz, como ele desenha, como ele pinta, como ele esculpe e também sobre o material propriamente, porque hoje em dia você tem métodos muito sofisticados de identificação dos materiais”, explica Ana Maria Belluzzo, professora colaboradora no Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, historiadora e ex-curadora do Museu de Arte Moderna (MAM).
Ela ainda salienta que há uma dificuldade em analisar obras antigas, porque as técnicas eram muito ajustadas às oficinas e às corporações, que seguiam cânones estéticos. Também era muito comum os artistas terem aprendizes, o que não acontece mais. Esse é um dos pontos de divergência entre os especialistas no caso da obra de Da Vinci: feito por ele ou por seus discípulos?
Yara explica que “é muito difícil dizer ‘aqui é o pintor’ e ‘aqui é o seu aluno’”. “Nós trabalhamos sem essas regras rígidas, depende de cada caso, de cada situação e dos recursos que a gente tem para analisar cientificamente. O processo de identificação da obra requer que você reconheça as características da obra, o que passa pela cor, pela configuração do espaço, assinatura”, diz Ana. É um trabalho interdisciplinar e que exige muita pesquisa.
Outro ponto importante é que não existe um catálogo inteiro e completo dos artistas a ponto de virar um objeto de consulta: “O artista tem um conjunto de obras que já está identificado, tem obras em museus e, de repente, aparece uma obra dele que ainda não estava catalogada. Aí ela é descoberta. Não é que está tudo pronto e ele pertence ou não pertence àquele conjunto, ele vai se fazendo no tempo”, explica a curadora. “Não é que a obra do Picasso, por exemplo, esteja toda catalogada, porque nenhum artista tem a obra toda catalogada. Então, você tem que partir disso: não há um trabalho prévio inicial onde está tudo sob controle e você pode ter a obra errada”, resume Ana.
Mesmo com todas essas ferramentas, o campo das artes é um “universo muito variado”, como caracteriza Ana. Por isso, ainda há impasses na identificação de obras como Salvator Mundi.
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