Quando estreou, há 50 anos, o filme Laranja Mecânica provocou um enorme escândalo. Críticos renomados (como na revista The New Yorker) atacaram o filme de Stanley Kubrick como imoral, por incitar à violência, e mesmo pornográfico, numa alusão à cena de estupro ao som brejeiro da canção Singin’ in the Rain. Foi censurado em diversos países (Irlanda, Brasil, África do Sul) e a Igreja Católica proibiu seus fiéis de assisti-lo. Foi mesmo retirado dos cinemas britânicos em 1973 (a estreia foi em dezembro de 1971), a pedido do próprio Kubrick, que se irritou quando, em dois casos de julgamento de assassinato por jovens delinquentes, a defesa recorreu à influência do filme, “além de qualquer dúvida razoável”, para abrandar a pena. Kubrick e a família receberam ameaças de morte e foram acossados, como de hábito, pela imprensa sensacionalista. Adaptado do livro homônimo de Anthony Burgess, os mais benevolentes viram no filme uma distopia e crítica mordaz ao behaviorismo e aos fracassados experimentos de ressocialização via lavagem cerebral.
Cinquenta anos (um milésimo de segundo no cronômetro da história) depois, a profecia de Kubrick se cumpriu, e até excedeu-se. Estupros viraram lugar-comum (a Índia dos gurus, por exemplo, é campeã em gang rape, estupros por gangues), a cura gay está aí e o sadismo corre solto e se refinou, não só nas guerras como no cotidiano das cidades. Tiroteios e ataques em shoppings, escolas e nas ruas tornaram-se triviais no mundo todo, praticamente diários, e, na falta de uma melhor explicação, são definidos como “sem causa aparente”. Antes se dizia que eram devidos a lobos solitários terroristas. Depois, pessoas com distúrbios mentais. Mas nenhuma dessas explicações (o fanatismo ideológico ou a psicopatia individual) chega exatamente a convencer. Não estamos falando de crime organizado, nem do pendor incontrolável da extrema-direita ou do Daesh para exterminar. A pergunta é outra: qual ideologia teria levado criminosos avulsos a assassinarem, por puro gosto, uma idosa de 82 anos no Brasil? Ou qual distúrbio inespecífico levou um garoto de 14 anos, agora na Tailândia, a sair matando? Amanhã e depois de amanhã se repetirá.
Para além de sociologismos, é preciso levar a sério o fenômeno da delinquência em si. Houve época e autores (como o psicólogo Winnicott) em que se associou delinquência e privação. Sim, sem dúvida. Mas o fenômeno se tornou tão generalizado e corriqueiro que pode ser considerado a patologia por excelência de uma época, a era da desigualdade e crueldade. O genial Kubrick anteviu essa luxúria de sadismo mesclada à indiferença e cinismo em Laranja Mecânica. Vale ver, em busca de pistas sobre a nova era da crueldade à la carte ao alcance de todos.
Conflito e Diálogo
A coluna Conflito e Diálogo, com a professora Marília Fiorillo, vai ao ar quinzenalmente sexta-feira às 8h, na Rádio USP (São Paulo 93,7; Ribeirão Preto 107,9 ) e também no Youtube, com produção da Rádio USP, Jornal da USP e TV USP.
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