Como pensar o cuidado materno como tempo de trabalho para a Previdência?

Especialistas comentam que a não existência de remuneração do trabalho reprodutivo acaba fazendo com que pouquíssimas mulheres que se dedicam a ele de maneira exclusiva contribuam para a Previdência Social

 27/07/2023 - Publicado há 12 meses
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O ingresso da mulher no âmbito profissional, mesmo que em processo de ampliação de seus direitos, ainda enfrenta uma série de desafios na realidade brasileira – Fotomontagem: Jornal da USP – Imagens: Freepik e Agência Brasil

 

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O ingresso da mulher no âmbito profissional, mesmo que em processo de ampliação de seus direitos, ainda enfrenta uma série de desafios na realidade brasileira. A divisão desigual das responsabilidades do chamado trabalho reprodutivo, por exemplo. As atividades reprodutivas não compreendem apenas as responsabilidades domésticas, conforme ressalta professora Júlia Lenzi Silva da Faculdade de Direito da USP e doutora em Direito do Trabalho e da Seguridade Social.

“O trabalho reprodutivo pode ser compreendido como todo aquele que viabiliza a vida, seja produção da vida propriamente dita, seja a sua reprodução. Então, todo o trabalho que atende às necessidades biológicas, fisiológicas, emocionais e até sexuais”, explica. Além disso, de acordo com Júlia, essa sobrecarga das atividades reprodutivas se estabelece tanto em casos remunerados, em forma de trabalho doméstico, quanto em não remunerado e, sobretudo, com mulheres. 

Consequências 

Júlia Lenzi Silva – Foto: Reprodução/FD-USP

Deise Martins, doutoranda de Direito do Trabalho e Seguridade Social na Faculdade de Direito da USP, aponta a dificuldade das mulheres em investir na carreira profissional como uma consequência da imposição social do trabalho reprodutivo como responsabilidade natural da figura feminina. “Elas não conseguem se realizar profissionalmente naquilo que desejavam, considerando a própria impossibilidade de dedicação de tempo, porque qualquer tempo adicional vai estar sendo empenhado nas tarefas reprodutivas”, comenta. 

Essa conjuntura favorece uma dependência financeira que, segundo Júlia, representa um dos principais motivos para a perpetuação de ciclos de violência de relacionamentos abusivos, uma vez que seus parceiros são responsáveis pelo seu sustento. No caso daquelas que conseguem desempenhar uma carreira profissional, as especialistas explicam dois cenários: o acúmulo de jornadas, no trabalho e na casa, ou a transferência das responsabilidades reprodutivas para outras mulheres, muitas vezes domésticas, que também cumprem múltiplas jornadas de trabalho. Júlia ainda complementa com dados concretos que quase metade das mulheres que se tornam mães são demitidas após o cumprimento da licença maternidade de dois anos. 

“A não existência de remuneração do trabalho reprodutivo acaba fazendo com que pouquíssimas mulheres que se dedicam a ele de maneira exclusiva contribuam para a Previdência”, destaca Júlia. Assim, ao não ser reconhecido como trabalho, as mulheres não acumulam o tempo de contribuição necessário e, quando reconhecido, o valor das aposentadorias recebidas por diaristas correspondem a um valor abaixo do esperado, já que existem as atividades dentro e fora do ambiente de trabalho.

Fator histórico

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Lei traz avanço na promoção real da igualdade salarial entre homens e mulheres

De acordo com um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, as mulheres (21,4 horas) cumpriam quase o dobro de horas em afazeres domésticos em relação aos homens (11 horas). Essa desigualdade não se orienta apenas pelo gênero, como pela cor de pele daqueles que realizam o trabalho; também, segundo o levantamento, a maior parte das mulheres que empenham as atividades reprodutivas é negra. Para entender a desigualdade na divisão das tarefas reprodutivas, Deise esclarece a construção histórica em torno dessas atividades, que atua de forma a direcionar e naturalizar a posição das mulheres no ambiente doméstico, principalmente das mulheres negras. Consequentemente, o trabalho reprodutivo e seu contexto passa a ser determinado pela própria presença feminina, como elementos intrínsecos um do outro. 

“Existe um processo de socialização e educação diferenciada para os meninos e para as meninas que reproduz a ideia de que o trabalho reprodutivo é uma incumbência feminina”, frisa Júlia. Com a responsabilização desde a infância, segundo a doutora, o preenchimento dessa função não é valorizado social e economicamente, além de sofrer um processo de romantização, uma vez que as múltiplas funções cumpridas pela mulher são vistas como algo admirável, excluindo a exaustão causada. 

Previsões mundiais 

Deise Martins – Foto: Arquivo Pessoal

A Argentina registrou um avanço considerável no campo da Previdência relacionado ao trabalho reprodutivo, em 2021, visto que passou a considerar o cuidado materno como forma de contribuição. Essa mudança representa, na visão de Júlia, um reconhecimento da “primeiríssima infância”, o período desde o nascimento até os 3 anos de idade, extremamente importante para o desenvolvimento futuro do indivíduo. Então, de acordo com Júlia, mesmo que primário, o avanço está oferecendo a essas mulheres a possibilidade de se ausentar do mercado produtivo sem que isso interfira na sua relação previdenciária.

Deise complementa que a medida, não obstante ser fortemente defendida, contempla apenas a maternidade, ou seja, uma única faceta do trabalho reprodutivo. Dessa maneira, eventualmente, mulheres que não são mães, mas que se dedicam às tarefas domésticas e de cuidado não são beneficiadas. Além disso, a especialista ainda considera que o tempo máximo de três anos de contribuição determinado pela medida é pouco em comparação com o cuidado prolongado dos filhos. 

A necessidade de ampliação e aprimoramento da mudança é ressaltada por ambas as especialistas para o alcance de uma melhor condição previdenciária dessas mulheres. Júlia pontua que a não existência de um salário destinado ao trabalho reprodutivo também dificulta o cenário. 

Previsões nacionais

No contexto brasileiro, Deise chama atenção para o Projeto de Lei (PL) 2647/2021 da deputada Perpétua Almeida (PCdoB-AC) que propõe medidas similares às argentinas. No entanto, a especialista não deixa de avaliar os retrocessos marcados pela Reforma da Previdência em 2019. “Por exemplo, o aumento da idade mínima para aposentadoria das mulheres que passou de 60 anos para 62 anos de idade, bem como a redução do valor da pensão por morte que é um benefício é recebido majoritariamente por mulheres”, exemplifica. 

Júlia também comenta sobre um entendimento errôneo de que o Estado deve se ausentar de questões econômicas e sociais, quando o órgão deveria funcionar como um instrumento de garantia de mínimos existenciais e condições reais de igualdade para que, efetivamente, possam concorrer no mercado de trabalho. “O debate da escolha entre uma cidadania de mercado é uma cidadania pautada em direitos sociais, é essencial para que a sociedade entenda como políticas públicas devem ser pensadas”, discorre. 

*Sob orientação de Marcia Avanza


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