Subvertendo imagens racistas: a costura da memória de Rosana Paulino

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da USP analisa como a artista ressignifica imagens para pensar as marcas da opressão racista; estudante apresentou sua pesquisa em evento sobre a História da Arte Afro-Americana, na Universidade de Boston, EUA

 30/11/2022 - Publicado há 2 anos
Sem Título, obra de 1997 integrante da exposição Costura da Memória, realizada na Pinacoteca de São Paulo de dezembro de 2018 a março de 2019 – Imagem: Reprodução/Museu de Arte Moderna (MAM)

 

No mês de novembro, a Universidade de Boston organizou o evento African American Art History: Present Coordinates (História da Arte Afro-Americana: Coordenadas Atuais, em tradução livre). Maíra Vieira de Paula, doutoranda na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV), proferiu uma palestra que é fruto da pesquisa que está desenvolvendo. O tema do seu doutorado é Pesquisar, selecionar, manipular, arranjar e exibir: a estratégia de apropriação fotográfica na produção artística de Rosana Paulino.

Foco do estudo de Maíra, a artista negra Rosana Paulino é uma inovadora na arte brasileira, mesclando diversos formatos em obras que tematizam a questão racial, em especial a da mulher. Ela possui graduação em Artes Plásticas pela ECA, além de ser doutora em Poéticas Visuais pelo PPGAV.

O trabalho de Rosana Paulino vem ganhando cada vez mais relevância. Ela foi a primeira artista negra brasileira a ter uma mostra individual na Pinacoteca de São Paulo, com a exposição A Costura da Memória. Esse espaço que ela continua a galgar, além de seus métodos de criação estética, fizeram com que Maíra se debruçasse sobre a artista em seu estudo. E o ponto que mais chamou sua atenção foi a questão da apropriação fotográfica, ainda pouco explorada pela crítica.

Maíra Vieira é fotógrafa e doutoranda pela ECA – Foto: reprodução / Lattes

Esse processo, defendido por Maíra como o mais importante dentro da obra de Rosana Paulino, consiste em transpor imagens fotográficas de um local para outro, de maneira que seus significados sejam alterados. A artista não criou esse procedimento; no entanto, ele desempenha um papel fulcral em sua carreira. Maíra procura entender o que causa tanto impacto quando se observa uma obra de Rosana Paulino, e como isso ocorre.

Para tanto, a pesquisadora procura ampliar o conceito de apropriação fotográfica. Para Maíra, “não é só o gesto da Rosana Paulino tirar a imagem do livro e pôr na galeria. Apropriação fotográfica tem que envolver tudo o que ela fez com essa imagem. Ela aumentou, cortou, sobrepôs as figuras, sem falar na pesquisa e na seleção”. Para ela, o conceito abarca todo o caminho que a artista percorreu até chegar ao produto final.

Reparação histórica?

Grande parte da crítica tende a enxergar uma espécie de reparação histórica nas obras de artistas negros que pensam o racismo, como se elas fossem capazes de recuperar a humanidade sequestrada da população negra durante a escravidão. Contudo, Maíra aponta que Rosana Paulino não demonstra essa pretensão em seu trabalho, o qual, ainda de acordo com ela, estaria mais próximo do pensamento “afropessimista”, em que não há possibilidade de reparação histórica. O que é possível é trazer novos olhares para o futuro, pois esse ainda pode ser alterado.

“A sociedade, em qualquer parte do mundo, valoriza menos as vidas negras. É como se ela tivesse até hoje uma sub-humanidade. Se você vê uma criança negra morrendo, isso choca menos que uma criança branca. Mas a gente pode tentar mudar o futuro”, afirma Maíra. É nesse sentido que a pesquisadora vê uma dimensão ética na obra de Rosana Paulino. A poética da artista é construída com base na subversão de elementos e narrativas racistas, que são reflexos da mentalidade da época, além de serem, eles próprios, instrumentos de opressão. Ao alterar essas imagens e criar novos sentidos que enfrentam o racismo, Rosana Paulino adota uma posição ética, vislumbrando um futuro em que a violência e subjugação contra o corpo negro deixem de ser uma realidade.

Maíra também ressalta que as diferentes dimensões presentes na obra da artista negra não podem ser separadas. Ou seja, os significados políticos, éticos e estéticos se concatenam através do processo de criação e execução de cada trabalho, que se torna uma síntese entrelaçada de todos eles. Nada do que está ali pode ser considerado incidental. Tudo provém de um procedimento bem arquitetado, especialmente o da apropriação fotográfica.

Popular e erudito

Em seu artigo Deslocamento, justaposição e suspensão: considerações iniciais acerca da apropriação fotográfica na poética de Rosana Paulino, Maíra analisa os conceitos que dão nome ao texto na obra de Rosana Paulino. Ao falar sobre a instalação Assentamento, de 2013, a autora faz uma afirmação que pode ser expandida para toda a obra da artista: “O principal objetivo de Rosana Paulino foi refletir sobre a experiência de deslocamento vivenciada por esses sujeitos (negros escravizados) e todas as suas contribuições para a formação da cultura brasileira”, diz o artigo.

Para a pesquisadora, a artista conseguiu isso por meio da apropriação fotográfica, que Rosana Paulino começou a utilizar ainda no início de sua carreira, com imagens de seu arquivo familiar. O uso de imagens familiares, de modo a resgatar a ancestralidade, ficou muito associado à sua figura.

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Mas a artista não busca inspiração e material apenas dentro de casa, ou na cultura ancestral e popular dos povos negros que vieram para o Brasil e o formaram. Enquanto pesquisadora e acadêmica, Rosana Paulino também se serve de outras fontes para construir a sua estética. Maíra faz questão de ressaltar esse lado erudito da artista. “Não é só porque a Rosana Paulino é uma mulher negra que ela consegue captar tão a fundo a escravidão. É por uma série de fatores, desde a experiência de vida dela, até a sua capacidade intelectual e técnica.”

Maíra também nota que essa faceta de Rosana Paulino não significa que ela tenha se submetido a uma cultura branca e europeia, até porque a forma como ela lida com esse tipo de conhecimento é muito subversiva. Na verdade, a inserção de Rosana Paulino no ambiente acadêmico e da cultura erudita é crucial para mostrar as falhas e lacunas existentes dentro desse sistema.

Rosana Paulino é uma artista visual brasileira – Foto: Leonor Calasans / Instituto de Estudos Avançados da USP

 

A artista

Assentamento N. 5, 2012. Litografia colorida sobre papel,
37,5 x 27,5 cm – Foto: arquivo da artista

Doutora em artes visuais pela ECA, Rosana Paulino é também especialista em gravura pelo London Print Studio. Com quase trinta anos de carreira, a artista visual brasileira foi selecionada para o prêmio Konex Mercosur 2022 de Artes Visuais, concedido às personalidades mais relevantes da região em atividade na última década. Integrante da chamada “Geração noventa”, Rosana Paulino expõe suas obras desde 1994 e possui trabalhos no acervo de importantes museus, como o MAM, o Museu Afro Brasil, a Pinacoteca do Estado de São Paulo e o Museu de Arte da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos.

 

Com texto de Thiago Campolina de Sousa, do LAC – Laboratório Agência de Comunicação


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