Perdi o gosto o prazer o desejo a vontade o querer
(Stela do Patrocínio, em Reino dos Bichos e dos Animais É Meu Nome)
O verso acima é parte da obra poética de Stela do Patrocínio, tema de um dos artigos da edição 79 da Revista do IEB, publicada pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, que acaba de ser lançada. O artigo sobre a poetisa — intitulado Stela do Patrocínio: Um Passado de Areia — é assinado pela professora Solange de Oliveira, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), pesquisadora na área de estética e filosofia contemporânea. A revista traz ainda outros oito artigos, que versam sobre diferentes temas, desde o pensamento do economista Roberto Campos (1917-2001) e o feminismo no Jornal das Moças, uma publicação da década de 50, até a formação do professor de geografia e a história do Paulista Futebol Clube, de Jundiaí (SP).
Nascida em 1941, no Rio de Janeiro, a poetisa Stela do Patrocínio passou grande parte de sua vida internada em instituições psiquiátricas, onde teve seu talento descoberto. Aos 21 anos foi encaminhada ao Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio, diagnosticada com esquizofrenia. Em 1966, foi transferida para a Colônia Juliano Moreira e tornou-se paciente do Núcleo Teixeira Brandão, voltado para mulheres, onde permaneceu até sua morte, em outubro de 1992, aos 51 anos. Foram 30 anos de internação, sem contato com familiares ou colegas.
Foi graças à instalação de um núcleo artístico na Colônia Juliano Moreira, na década de 1980, que as produções de Stela foram reconhecidas. O “falatório” da poetisa — termo usado para se referir às suas enunciações — foi registrado pela equipe de psicólogos do núcleo, e posteriormente transcritos em versos. A experiência na clausura, a dor, a solidão e a doença são tópicos abordados em suas reflexões.
Eu estava com saúde
Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente
O hospital parece uma casa
O hospital é um hospital
(Stela do Patrocínio)
A pequena fração do trabalho artístico de Stela da qual se tem conhecimento, bem como os fatos sobre sua trajetória de vida, foi reunida pela psicanalista Viviane Mosé no livro Reino dos Bichos e dos Animais É Meu Nome, publicado em 2001, que reúne a transposição daquelas falas gravadas.
A proposta do artigo Stela do Patrocínio: Um Passado de Areia é fazer uma leitura de abordagem fenomenológica existencialista da obra de Stela do Patrocínio. “Este ensaio celebra a alteridade como fonte de conhecimento e de possibilidades que se abrem, quando nos permitimos adentrar em um mundo impensável até então. O intuito é suscitar a resistência ao pensamento homogêneo e convocar à tomada de posição”, escreve a professora Solange de Oliveira.
“Stela do Patrocínio aguça imagens borradas e cruas. Expressa-se torcendo as palavras, espoliando-as sem pudor.” As primeiras palavras do artigo antecipam o que será tratado pela autora no que diz respeito ao que difere a obra de Stela daquilo que, como sociedade, fomos ensinados a valorizar: o familiar, o pensamento instalado e o letramento excessivo. “Nada há na poesia de Stela do Patrocínio que suscite esse mundo explicado e comprovado pelas verdades científicas. A fala da poetisa se anuncia em nós, e nos convoca a uma tomada de posição diante de seu estilo”, destaca Solange. “O estilo é um modo de formulação através do qual Stela se faz reconhecer em sua escritura. É um determinado meio de recriar o mundo a partir de um repertório de valores.”
O mundo que eu tô botando pra dentro
De tanto olhar
Olhar
De tanto enxergar olhar ver espiar
Sentir e notar
Tô botando tudo pra dentro porque botando
pra dentro eu botei pra fora
(Stela do Patrocínio)
Através desse estilo e linguagem próprios, Stela traça sua história, que é também pertencente à massa de excluídos da sociedade, e registra certa denúncia aos tratamentos que, mais tarde, pelo viés da luta antimanicomial, passaram a ser analisados de outra forma. “O ponto no mundo que ocupa e do qual Stela fala é único; também suas experiências são inalienáveis, mas têm o poder de nos penetrar e articular em nós um pensamento que era impensável até esse contato unívoco”, analisa Solange.
Para a professora, a expressão de Stela do Patrocínio parte de um mundo sem glamour como inspiração, “como a flor de lótus cintilando ao sol, com as raízes fixadas na lama”, compara. No artigo, há ainda a reflexão de que as expressões chamadas inatas, de iletrados ou subletrados artisticamente, estão ganhando espaço e notoriedade no mundo mais diverso da contemporaneidade. “Resta saber se seus protagonistas também são.”
É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
(Stela do Patrocínio)
A nova edição da Revista do IEB estreia a seção Criação, que tem como objetivo publicar textos e materiais inéditos de escritores, artistas, fotógrafos e desenhistas. Para essa edição, foram selecionados seis poemas de Maria Nilda de Carvalho Mota, a Dinha, que é militante contra o racismo. Completando a revista, a seção Documentação traz o artigo Entre Plantas e Documentos: Algumas Considerações sobre a Contribuição do Acervo do IEB ao Pequeno Guia da Botânica Modernista, de Ana Carolina Ribeiro, e a resenha Correspondência Intelectual: Uma Nova Perspectiva sobre Furtado, de Mauricio Coutinho, que comenta a correspondência intelectual do economista Celso Furtado do período de 1949 a 2004.
A Revista do IEB, número 79, publicação do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, está disponível gratuitamente neste link.