FERDINANDO MARTINS, especial para o Jornal da USP
O dramaturgo e diretor alemão Bertold Brecht escreveu Mãe Coragem e Seus Filhos no início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando já se anteviam os horrores da barbárie nazista. Um dos textos mais conhecidos do teatro épico brechtiano, a peça narra a trajetória de Anna Ferling, apelidada de Mãe Coragem, pequena vendedora e mãe de três filhos que sobrevive graças ao comércio de mercadorias ordinárias durante a Guerra dos Trinta Anos, conflito entre reinos europeus ocorrido nos anos de 1618 a 1648. Para manter sua família, a personagem empreende negociações e conchavos, valendo-se muitas vezes de expedientes pouco honestos. Reflexão densa sobre as formas com que o fascismo se instaura e se mantém, uma nova montagem brasileira de Mãe Coragem recém-estreou em São Paulo, com direção de Daniela Thomas.
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O espetáculo acontece no ginásio poliesportivo do Sesc Pompeia, localizado no segundo andar do edifício concebido por Lina Bo Bardi na zona oeste da capital paulista. Seguindo riscos no chão, o público entra em arquibancadas construídas especificamente para as apresentações e que integram o próprio cenário. Ainda que respeite as divisões palco/plateia em formato de arena, a iluminação refletida nos metais da estrutura, assim como a disposição dos demais elementos cênicos, colocam o espectador em um vasto e árido campo de lama, terra devastada, escura e inóspita. Cenário, figurinos e trilha sonora não permitem uma identificação histórica específica, remetendo à atemporalidade do fascismo e suas perversões, quase como um mal inerente à condição humana.
Ao longo de duas horas e meia, o público acompanha as dificuldades de Anna Ferling, interpretada pela atriz Bete Coelho, parceira de longa data da diretora. Para essa personagem-título, os miseráveis sempre “estão fritos”, mas na guerra têm mais vantagens. Diferente dos melodramas banalizados pela indústria cultural, não há nenhuma idealização do amor materno. Ambígua em suas intenções e afetos, Mãe Coragem não é uma vilã humanizada como certas personagens de telenovelas que abrem possibilidades perversas de identificação com o público. Inversamente, Anna Ferling exige distanciamento para ser compreendida. Ela é a expressão da banalidade do mal, despida de repertórios romantizados sobre família. Sua moralidade é ambígua, não sendo possível fixá-la como boa ou má. Em certo momento, Mãe Coragem precisa negociar a libertação de um dos filhos, que acaba morto enquanto ela regateava um preço melhor. Em seguida, para safar-se de mercenários, nega-se a reconhecer o próprio corpo do filho que jazia à sua frente.
As associações mais imediatas geram sentidos que conduzem ao momento político contemporâneo, quando se exaltam armas, guerras e nacionalismos fascistas emergentes em várias partes do mundo. Mais especificamente, encaixa-se com a atual realidade brasileira na desfaçatez dos corruptos, na presença bélica de religiosos no poder e em julgamentos baseados não na justiça, mas em interesses mesquinhos e sórdidos.
No entanto, Mãe Coragem aponta para estruturas mais sólidas, densas e ocultas. Se para Brecht a cadela do fascismo está sempre no cio, localizar o conflito no século 17 indicaria uma certa universalidade da mesquinharia humana e do desprezo pela vida. A guerra, seja ela qual forma, coloca a todos em situação de precariedade e vulnerabilidade. Os inimigos são erigidos como seres abjetos, passíveis de serem aniquilados, não importando se venham a mudar de lado. Não se visa a chegar a algum entendimento ou solução, mas sim a manter o estado constante de terror. A rendição, quando ocorre, é pelo esgotamento das possibilidades concretas de manter o conflito.
Todavia, se de um lado há governantes que conduzem o destino das guerras, de outro há uma política comezinha e cotidiana, expressa em relações interpessoais e ações corriqueiras. Ainda que os arranjos políticos colapsem e as estratégias e táticas bélicas desorganizem-se em entropias múltiplas, os discursos de dominação mantêm-se em ordem. Desprivilegiada, Anna Ferling é a expressão candente de uma moral personalista e alienada, alheia a um bem maior. Ocupando uma das mais subalternas posições no conflito – afinal, suas quinquilharias são dispensáveis –, não há possibilidade de ser ouvida, cabendo-lhe somente perambular entre destroços e trincheiras com sua carroça.
Em geral, mães retratadas nas narrativas de guerras e nos conflitos políticos são coadjuvantes compassivas do sofrimento. Pietà com o corpo de Cristo morto nos braços, mães de maio andando em círculos em frente à Casa Rosada, mulheres com bebês no colo em barcos de refugiados sírios. Anna Ferling, ao contrário, é avessa a sentimentalismos. Sob a direção de Daniela Thomas, Bete Coelho a construiu como uma mulher contida. Em dado momento, caminha sob a chuva cenograficamente construída, lamentando-se como Medeia. O aparato técnico produz um efeito de deslumbramento, colocando em evidência a pequenez da personagem. Como Eichmann em Jerusalém, não se responsabiliza pelas desgraças que causa e identifica-se como vítima.
Trata-se de um espetáculo de mulheres, um Brecht subvertido pela forte presença feminina. Não por acaso, Carlota Joaquina e Luisa Renaux anunciam o início de cada parte da peça, em português e alemão. Além de Thomas e Coelho, Amanda Lyra é outro ponto alto da montagem, ao caracterizar a prostituta Ivete de maneira espirituosa, rindo de seu corpo sifilítico. Após a guerra, retorna como a Tieta de Jorge Amado, esta por sua vez inspirada em Claire Zachanassian, de A Visita da Velha Senhora, de Friedrich Dürrenmatt. Sua vingança, porém, já está concluída. Diferente de Mãe Coragem, a guerra a tornou uma viúva rica.
A peça Mãe Coragem e Seus Filhos, de Bertold Brecht, com adaptação de Daniela Thomas, fica em cartaz até 21 de julho, de terça-feira a sábado, às 20h30, e domingos, às 18h30, no Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Água Branca, em São Paulo). Ingressos: de R$ 12,00 a R$ 40,00. Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (11) 3871-7700 e no site do Sesc Pompeia.