Galopando cada vez mais rápido, a covid-19 alimenta obituários e notas recordatórias. São mais de 300 mil mortes, mas não dá para se acostumar.
Quem partiu nesta quarta-feira, dia 7, vítima dessa doença, foi o professor de literatura, crítico e ensaísta Alfredo Bosi, deixando as letras e a comunidade universitária de olhos tristes. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, tinha 84 anos e estava internado em São Paulo.
Bosi, que nasceu em 26 de agosto de 1936, fez da Universidade de São Paulo uma presença incontornável em sua biografia. O começo foi em 1954, quando iniciou sua graduação em Letras Neolatinas na célebre Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL), cravada no centro de São Paulo, no prédio histórico da Rua Maria Antonia. Concluiu o curso em 1958, especializando-se, nos dois anos seguintes, em Filologia Românica, Literatura Italiana e Literatura Brasileira.
O início das atividades docentes foi na sequência, em 1959, como assistente de Literatura Italiana na FFCL. Após passar um período entre 1961 e 1962 especializando-se na Università degli Studi di Firenze, na Itália, volta para a USP e reassume o ensino de Literatura Italiana de 1963 a 1970. É nesse momento que defende seu doutorado sobre a narrativa de Luigi Pirandello (1964) e sua livre-docência sobre a poesia de Giacomo Leopardi (1970).
É ainda nos anos 1960 que o professor publica os livros O Pré-Modernismo (1966) e História Concisa da Literatura Brasileira (1970), obra que o coloca entre os grandes da crítica literária nacional, com apenas 34 anos. A partir de 1971, já na FFLCH, a sucessora e herdeira espiritual da FFCL, Bosi passa a se dedicar à literatura brasileira, chegando a professor titular. Data de 1977 outro de seus livros clássicos, O Ser e o Tempo da Poesia (1977).
O Instituto de Estudos Avançados (IEA) é outra paisagem da USP na qual Bosi impôs seu relevo. Fez parte do primeiro conselho deliberativo da unidade, em 1987, e dois anos depois tornou-se editor da revista Estudos Avançados, posto que sustentou por 30 anos. Foi ainda diretor do instituto de 1998 a 2001.
Prêmios e reconhecimentos também assomam na biografia do professor. Recebeu o prêmio Jabuti duas vezes, por Dialética da Colonização (1992) e Machado de Assis: o Enigma do Olhar (1999). Condecorações também foram duas: primeiro com a Ordem do Rio Branco, oferecida pela Presidência da República em 1996, e depois com a Ordem do Mérito Cultural, concedida pelo Ministério da Cultura em 2005.
Tornou-se Professor Honorário do IEA em 2006 e Professor Emérito da FFLCH em 2009. Bosi também ocupava, desde 2003, a cadeira número 12 da Academia Brasileira de Letras. Mas nem precisava dela para ser reconhecido como um imortal.
O reconhecimento em vida veio também por meio de obras dedicadas ao professor. Uma delas, publicada em 2018, é Reflexão como Resistência: Homenagem a Alfredo Bosi, organizada pelos professores da FFLCH Augusto Massi, Erwin Torralbo, Marcus Mazzari e Murilo Marcondes de Moura.
Seu último livro, Arte e Conhecimento em Leonardo da Vinci, havia sido publicado em 2018 (leia aqui matéria sobre esse livro publicada no Jornal da USP). Bosi foi casado com Ecléa Bosi (1936-2017), Professora Emérita do Instituto de Psicologia (IP) da USP, e teve dois filhos, Viviana, também professora da FFLCH, e José Alfredo. Deixou os netos Daniel e Tiago.
O mais multifacetado dos críticos
Professores, colegas e ex-alunos lamentaram a morte de Bosi e recordaram seu legado. O diretor da FFLCH, Paulo Martins, que foi aluno de graduação de Bosi, considera o antigo mestre um professor excepcional e “o mais multifacetado dos críticos literários do País”.
“Ele conseguiu ser um professor das multidões”, comenta o diretor, referindo-se ao empenho e à habilidade de Bosi nos cursos iniciais da graduação, tradicionalmente assistidos por um número elevado de estudantes. “Ele é um professor que consegue atingir um público muito jovem e tem a noção da dimensão do que é a Universidade: qual é a sua diferença em relação ao ensino médio e como essa transição pode ser feita de uma forma não tão dolorida.”
Ao mesmo tempo, pontua Martins, Bosi se destacou também na formação de pós-graduandos. “O professor tem uma plêiade de pupilos que foram para o magistério superior, na USP e fora dela, que levaram o seu legado, sua metodologia e a maneira de ser generoso com seus alunos.”
Outra das facetas recordadas pelo diretor é a do Bosi escritor. “Da mesma forma que ele consegue verticalizar, ele consegue horizontalizar, do ponto de vista de uma divulgação literária brasileira importante”, explica Martins. Para o ex-aluno, Bosi se destacou tanto na composição de obras de apresentação e iniciação aos estudos literários – como é o caso de História Concisa da Literatura Brasileira, volume que alcançou a fabulosa marca de 50 edições – quanto em textos mais complexos e “verticalizados”, como o vencedor do Jabuti Dialética da Colonização, traduzido para o espanhol, o francês e o inglês e considerado por Martins um “divisor de águas” na crítica literária.
A terceira dimensão que o diretor lembra tem a ver com a figura política de Bosi. “Ele é um marxista e um católico – e isso está em seu DNA. Ele tem a sua vida política associada aos movimentos da Igreja Católica paulistana, aquela Igreja associada a dom Paulo Evaristo Arns, e participa de movimentos pelos direitos humanos na ditadura”, comenta Martins. Dentre suas atuações, Bosi integrou a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.
“Ele tem esses três matizes e não há um mais importante do que o outro”, reflete o diretor. “É justamente a conjunção deles que compõe a figura do professor Alfredo Bosi.”
Exultação e agradecimento
O ensaísta, crítico literário e também professor da FFLCH Alcides Villaça, ex-orientando de Bosi, enviou ao Jornal da USP algumas observações pessoais escritas por ocasião do falecimento do Professor Emérito.
“Terminei meu curso de graduação em Letras com aquele professor moço de Literatura Brasileira, Alfredo Bosi, recém-egresso da área de Literatura Italiana, que acabara de publicar uma admirável História Concisa da Literatura Brasileira”, conta Villaça. “Era 1971, eu me preparava para me bacharelar, me licenciar e sumir da Universidade. Mas aquele professor moço, com aquela erudição, aquela sensibilidade, aquela prática ética, aquele descortino político e aquele fino humor, que surgiu como um espantoso meteoro, me deu vontade de continuar meus estudos.”
“Em 1972, eu me sentei diante de uma mesinha de seleção da pós-graduação para ver se ele me aceitava como seu orientando”, prossegue Villaça. “Aceitou, e minha vida deu então uma guinada definitiva. Até hoje preservo ou discuto valores que ele me transmitiu como orientador e grande amigo. Aliás, muitas cláusulas das discussões mais consequentes aprendi com ele. Ao acenar hoje para sua partida, exulto com o que ele deixou de mais vivo para mim, para nós, entre todos nós: a reflexão sensível, o compromisso crítico com o peso misterioso, amoroso e poeticamente incalculável de cada pessoa.”
O diretor do IEA, professor Guilherme Ary Plonski, também se manifestou, agradecendo postumamente ao professor, em nome de todo o instituto. “Neste momento de sua partida prematura, a comunidade do IEA se despede do professor Alfredo Bosi, seu anterior conselheiro, diretor e editor da revista Estudos Avançados, com uma palavra: Obrigado!”, comunicou Plonski ao Jornal da USP. “Palavra que o professor Bosi caracterizou ‘a mais simples e ao mesmo tempo a mais densa. (…) Moeda corrente do cotidiano, traz, porém, no metal em que se fundiu o compromisso ético que lhe vem da ideia de obrigação. Dizê-la é também um dever’. Que a memória do querido professor Alfredo Bosi ilumine o caminho do IEA e de todos que com ele tiveram o privilégio de conviver.”