O que uma criança nascida no semiárido brasileiro há 1.500 anos revela aos dentistas de hoje

Análise dos ossos e dentes indicou problemas de crescimento e erosões causadas por vômitos, um possível sinal de doenças gastrointestinais ou neurológicas

 13/07/2020 - Publicado há 4 anos
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Esqueleto de criança que nasceu há 1.500 anos, encontrado em sítio arqueológico no interior de Pernambuco, traz revelações sobre problemas de saúde frequentes nos consultórios de hoje como anorexia, bulimia e refluxo gastrointestinal – Fotomontagem: Jornal da USP

Na região do semiárido pernambucano, no lugar conhecido como Pedra do Cachorro, uma criança morre aos três anos de idade. A análise dos ossos revela problemas de crescimento. Os dentes apresentam marcas de erosão causadas por vômitos, um possível sinal de doenças gastrointestinais ou neurológicos. Um caso comum, a não ser pelo fato de a criança ter nascido há 1.500 anos e seus ossos terem sido encontrados por uma equipe de arqueologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e enviados para análise no Instituto de Biociências (IB) da USP. Os estudos revelaram também que as marcas nos dentes são similares às encontradas em pacientes com anorexia, bulimia e refluxo gastrointestinal, problemas frequentes nos consultórios de hoje.

Localização do sítio arqueológico da Pedra do Cachorro, no Parque Nacional do Catimbau, no semiárido pernambucano – Imagem: Dental Antrhopology/UFPE/USP

O estudo é descrito em artigo da revista Dental Anthropology. O local pesquisado fica no Parque Nacional do Catimbau, no interior de Pernambuco. “É uma área do semiárido nordestino e com algumas formações de arenito típicas da região”, descreve o pesquisador Rodrigo Elias de Oliveira, que analisou o material. “O sítio arqueológico estava embaixo de uma espécie de abrigo e o solo do local, cujo pH que é de neutro para básico, ajudou a preservar muito bem o esqueleto”, disse o pesquisador ao Jornal da USP.

Esqueleto de criança encontrado na região da Pedra do Cachorro, em Pernambuco; dentes apresentavam alterações que não eram comuns ao uso habitual para mastigação – Imagem: Dental Anthropology

De acordo com Oliveira, a criança tinha alterações nos dentes e nos ossos. No caso dos ossos, a alteração era diferente do desgaste natural dos dentes causado pela mastigação. “Isso chamou a atenção dos pesquisadores da UFPE, que foi a equipe que escavou o sítio arqueológico entre 2015 e 2016”, conta.

“Ao perceber essa pequena alteração nos dentes anteriores superiores dessa criança, o material foi enviado à USP para exames e, a partir de uma análise prévia, decidiu-se pela elaboração de um artigo para apresentar as possíveis causas dessa alteração, tanto nos dentes quanto nos ossos”. A equipe em Pernambuco enviou para São Paulo fotos e radiografias da ossada, além de dois dentes que tiveram alterações, os quais passaram por análises físicas, macroscópicas e microscópicas (microscopia eletrônica).

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“As análises indicam que essa criança teve episódios frequentes de vômito ao longo da vida, o que fez com esses dentes fossem corroídos na parte de trás, junto à língua, e isso também é associado às marcas nos ossos”, relata o pesquisador. “O pouco crescimento dessa criança, que ao morrer apresentava estatura similar a de um bebê com um ano e meio de idade aponta que, muito provavelmente, ela passou por muitos períodos de desnutrição, possivelmente devido à doença que tinha e que deixou marcas nos ossos, conhecidas como linhas de Harris, e que mostram a interrupção do crescimento”, conta ao Jornal da USP.

Segundo o pesquisador, as marcas nos dentes podem evidenciar doenças sistêmicas no organismo da criança, e não apenas algo local, como uma cárie, por exemplo. “Apesar do trabalho ter sido feito com material arqueológico, que tem pelo menos 1.500 anos, ele chama a atenção aos dentistas atuais, pois marcas muito parecidas são deixadas nos dentes de pessoas com refluxo gastrointestinal, cada vez mais frequentes na atual sociedade pós-industrial”, ressalta, “ou em casos de bulimia e anorexia, onde a provocação de vômitos frequentes também deixa essas marcas”.

Todas essas marcas são encontradas com frequência nos consultórios odontológicos, destaca Oliveira. “Os dentistas precisam ficar atentos a essas evidências, porque elas podem estar indicando, como é mais comum hoje em dia, casos de anorexia, bulimia e refluxo gastrointestinal”, afirma, “mas também podem estar indicando, como no caso descrito no artigo, uma doença sistêmica, um tumor, ou um problema anatômico do sistema gastrointestinal, e também doenças do sistema nervoso central que provocam vômitos frequentes”.

Comparação entre uma dentição atual e a dentição da criança; desgaste dos dentes é similar ao encontrado atualmente em casos de anorexia, bulimia e refluxo gastrointestinal – Imagem: Dental Anthropology/USP/UFPE

 

A pesquisa foi realizada no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do IB. Os estudos tiveram a participação do professor André Strauss, do Museu de Arqueologia e Etnografia (MAE) da USP, e de Ana Solari, Sérgio Francisco Silva, Gabriela Martin e Caio Belém Soares, da UFPE, que realizaram as escavações em Pernambuco e enviaram material para análise.

 

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As conclusões do estudo são descritas no artigo Dental corrosion in pré-industrial societies: A case study of a child from ‘Pedra do Cachorro’, dating to 1.470 BP, Northeastern Brazil, publicado na revista Dental Anthropology.

Mais informações: e-mail eliaso@usp.br, com Rodrigo Elias de Oliveira


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