Regulamentar ou criminalizar a prostituição no Brasil, um eterno debate

Garoto de programa relata a sua rotina por 15 anos e profissionais da área do Direito e da Antropologia tecem considerações acerca da prostituição como profissão regulamentada

 31/05/2023 - Publicado há 1 ano
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O debate em torno da legalização da prostituição é polêmico – Foto: Pixabay

 

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No início deste mês, uma garota de programa da capital paulista registrou Boletim de Ocorrência contra a dona da boate que a agrediu após não ter o dinheiro do dia para repassar. Por outro lado, a polícia prendeu dois homens suspeitos de terem estuprado uma garota de programa, na região da Casa Verde, na zona norte de São Paulo. Tão antigo quanto a profissão, o debate em torno da legalização da prostituição é polêmico. Enquanto alguns argumentam que a regulamentação pode ser benéfica para a saúde e segurança dos profissionais, outros acreditam que a atividade deve ser criminalizada por motivos morais e de saúde pública.

As violências no cenário da prostituição são múltiplas e constantes. Parcela das prostitutas muitas vezes não escolhe os clientes, são aliciadas por cafetões e cafetinas, são obrigadas a oferecerem seus serviços a diferentes pessoas. Ademais, as prostitutas não sofrem somente violências físicas, mas estão expostas a todo tipo de violência, como tráfico, estupros, abusos sexuais, roubos e a violência psicológica perpetrada por meio de humilhações, desqualificação, ofensas verbais e morais.

Na prostituição, a demanda cria a oferta. Porque os homens querem comprar sexo, a prostituição é considerada inevitável e, portanto, é “normal”. Um comprador de sexo, que não quis se identificar, falou que “estar com uma prostituta é como tomar uma xícara de café, quando você não quer mais, você joga fora”. Um outro comprador, também anônimo, explicou que, na prostituição, “a mulher desiste do direito de dizer não”. E outro homem ainda esclarece a natureza de seu relacionamento com as mulheres que ele compra: “Eu paguei por isso”.

Uma pesquisa coordenada pela psicóloga clínica norte-americana Melissa Farley e publicada no artigo Comparing Sex Buyers with Men Who Don’t Buy Sex identificou que 30% das prostitutas de Boston, nos Estados Unidos, sofreram violência física. Outras 12,5% sofreram violência sexual e 10% foram vítimas de violência psicológica no ano de 2016.

Daniel Pacheco Pontes – Foto: Arquivo Pessoal

Prostituto por 15 anos, João, que usou nome fictício nesta reportagem, acha que a regulamentação do trabalho não seria nem benéfica nem maléfica. “Independentemente de sua regulamentação, as pessoas que se identificam como travestis, prostitutas ou garotas de programa estão sempre sujeitas a riscos nesta sociedade, porque, a partir do momento que elas entram dentro de um carro, passam a ser vítimas e correm o risco de não voltar vivas. Se voltam bem, muitas vezes precisam ficar no ponto a noite inteira, sujeitas à violência física, humilhação e ameaças de gangues, cafetões e policiais.” Para ele, é importante refletir se a regulamentação da prostituição realmente mudaria para melhor. “Eu acho pouco provável que mude a mentalidade preconceituosa de muitas pessoas.” 

Daniel Pacheco Pontes, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP) da USP, argumenta que a regulamentação da prostituição é controversa devido ao conflito entre direito e moral. No entanto, defende que o direito penal deve ser independente e proteger os direitos individuais. “Nesse sentido, se a pessoa está utilizando o seu corpo da forma que lhe convém, sem ser forçada, e sem passar por nenhum tipo de violência, este não seria um problema de Direito Penal.”

Pacheco afirma que, no Brasil, a prostituição é permitida, o que significa que qualquer pessoa pode se prostituir sem o risco de ser presa, mas que, no entanto, existem muitos crimes associados a essa prática, previstos no ordenamento jurídico nacional. “Um exemplo bem conhecido é o crime de exploração da prostituição, que ocorre quando alguém lucra com o trabalho de outra pessoa nesse ramo”, relata. 

Pelo mundo, diversos entendimentos

A mestranda em pós-graduação em Antropologia Social da USP, Ana Carolina Azevedo, diz que, quando a ilegalidade da prostituição recai sobre terceiros e não criminaliza a pessoa que se prostitui, o modelo legal é chamado de abolicionista, e é adotado por países como Suécia, França e Inglaterra.

Ana Carolina Azevedo – Foto: Arquivo Pessoal

“Já países como Armênia, Azerbaijão, Croácia e a maior parte dos Estados Unidos optam pelo modelo proibicionista, que é o mais repressivo de todos, onde a prostituição é completamente ilegal, o que significa que tanto as pessoas que compram quanto as que vendem sexo são criminalizadas”, explica Ana. 

A mestranda comenta, ainda, sobre o modelo regulamentarista, que é caracterizado pela tolerância oficial do Estado, em que a prostituição é redefinida como trabalho sexual, sendo adotado na Alemanha, Holanda, partes do Canadá e Austrália.

A antropóloga observa que diferentes modelos legais produzem diferentes imagens das pessoas que trabalham no comércio sexual. “No caso do modelo abolicionista, a imagem que se forma da garota do sexo é de vulnerabilidade e fragilidade.” 

No entanto, Ana aponta que a predominância dessa imagem não se concretizou no Brasil, devido ao movimento das prostitutas que lutam pelos seus direitos e pela regulamentação da profissão, exigindo melhores condições de trabalho e visibilidade. “Há mais de dez associações de prostitutas em diferentes regiões do País, demandando direitos e políticas públicas, lutando por protagonismo e visibilidade, exigindo melhores qualidades de vida e a regulamentação da profissão”, alega.

Aposentadoria como autônomo

Embora a prostituição não seja uma profissão regularizada no Brasil, há a possibilidade de uma assistência do Estado. Segundo Pacheco, embora a Constituição permita que a pessoa que se prostitui contribua para o INSS e se aposente como autônomo, na prática, essas pessoas acabam ficando em situações vulneráveis e precisam de ajuda para se proteger.

Especialista em Direito Penal, o professor sugere que, em vez de criminalizar a prostituição, seria mais benéfico regulamentá-la. Ele afirma que a criminalização poderia resultar em problemas significativos, uma vez que muitas pessoas seriam rotuladas como criminosas. Por outro lado, a regulamentação permitiria que a atividade fosse exercida dentro dos limites legais e com proteção. “Isso respeitaria a laicidade do País e separaria o direito penal da moral e da religião.”

Um não comprador de sexo analisou a situação da seguinte maneira: “A prostituição pode não ser o que a mulher pensou que seria, e pode levar a outras dependências, como drogas e álcool”. Um dos compradores de sexo, que se manteve no anonimato, comenta com ironia: “Vamos encarar, fazer sexo com 3 mil caras tende a diminuir os sentimentos reais”. No entanto, para João, a questão é simples: “Você está apoiando um sistema de degradação, e é muito triste”.


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