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Chamar o fogo que consumiu o acervo de 20 milhões de itens do Museu Nacional do Rio de Janeiro de “tragédia anunciada” é um clichê, sem dúvida. Mas até os clichês são verdadeiros quando se coloca na mesa o descaso que a cultura brasileira vem vivenciando desde… talvez desde 1892, quando o Museu Nacional saiu de seu espaço no Campo de Santana, no centro do Rio, e se encastelou no Palácio São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, na Zona Norte carioca. O lugar de reis e imperadores era, já há algum tempo, o lar de figuras ilustres como Luzia, com seus mais de 11 mil anos de idade, de Sha-amun-em-su, a cantora egípcia eternamente recolhida a seu sarcófago, e monstros pré-históricos cuidadosamente reconstruídos – isso, entre tantos milhões de peças. Mas nem Luzia nem a múmia cantante nem pterodáctilos, que resistiram ao tempo, sobreviveram ao descaso oficial.Um descaso que, infelizmente, ilustra bem como são tratadas a ciência, a cultura e a história no Brasil.
E um descaso que pode ser traduzido, em meio a tantas traduções, à falta de água nos hidrantes diante do museu, atrapalhando em muito a ação dos bombeiros. O fogo lambeu as paredes e tetos forrados de madeira do Palácio São Cristóvão, mas foi além. Porque o Museu Nacional não era só um espaço bacana para se levar os filhos no final de semana e contar histórias sobre o Bendegó – o tal meteorito encontrado na Bahia no século 18, com mais de 5 toneladas. Não. O Museu Nacional era um espaço de estudo, de pesquisa, vinculado a uma universidade federal, que sobrevivia – ou não – com recursos federais. Era um museu de pesquisa e que viu anos e anos de trabalho de cientistas virarem cinzas junto com seu acervo.
Museus bem tratados mundo afora, como o Louvre, têm cuidados especialíssimos quanto aos riscos que podem correr. São extintores de incêndio estrategicamente colocados em salas discretas junto ao espaço expositório, rotas de fuga bem elaboradas e uma atenção constante, que se traduz em verbas e cuidados permanentes. Mas isso é com museus que são tratados com seriedade e com a relevância que o seu acervo – seja ele qual for – exige. Não é nosso caso.
Muito menos é o caso de falas erráticas e desconexas como a do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, que prometeu “recuperar cada detalhe“ do acervo do museu, como se soubesse do que estava falando. O prédio, fisicamente, pode até ser restaurado, já que suas grossas e seculares paredes de pedra parecem ter resistido bem ao desastre. Mas ele é o continente. O conteúdo se foi em meio às labaredas. Tudo perdido. E testemunhado pelo Bendegó, o gigante de níquel e ferro, uma das raríssimas peças que escaparam do fogo travestido em metáfora.
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O fogo no final do domingo
A tal tragédia anunciada se materializou na noite deste domingo (2), quando um incêndio de grandes proporções destruiu o acervo do Museu Nacional. Especializado em história natural e mais antigo centro de ciência do País, o Museu Nacional completou 200 anos no mês de junho. Seu acervo, com mais de 20 milhões de itens, tem perfil acadêmico e científico, com coleções focadas em paleontologia, antropologia e etnologia biológica. O museu guardava o meteorito do Bendegó, o maior já encontrado no País, e uma coleção de múmias egípcias. Também o já mencionado crânio de Luzia, a mulher mais antiga das Américas, além de coleções de vasos gregos e etruscos.
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Segundo o comandante geral do Corpo de Bombeiros do Rio, o coronel Roberto Robadey, o prédio não tinha um sistema adequado de proteção contra incêndios. A legislação que exige esse tipo de estrutura é de 1976, quando o museu já tinha mais de cem anos. Segundo o coronel, há cerca de um mês, representantes do museu procuraram os bombeiros para tratar da instalação de um sistema de proteção contra incêndios.
Em entrevista ao Jornal da USP no Ar, Carlos Roberto Ferreira Brandão, diretor do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP e ex-presidente do Instituto de Museus (Ibram), falou sobre o incêndio.
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Para o professor, a perda é irreparável não só para o patrimônio brasileiro como para o patrimônio mundial. Segundo ele, a tragédia era anunciada, uma vez que, nos últimos anos, a queda no orçamento do museu foi proporcional ao aumento do risco que o prédio sofria. Ele recorda um projeto de recuperação do museu, financiado pela Petrobras, iniciado há dez anos. A ideia era transferir as coleções presentes no prédio para nove edifícios que seriam construídos, mas o processo foi interrompido após a construção de apenas três.
De acordo com o especialista, não há um sistema de reparação jurídico-internacional que possa responsabilizar o Brasil por essa perda de patrimônio, que era de interesse mundial. Entretanto, o País já sofre uma responsabilização moral, que é igualmente danosa e preocupante, até porque muitos outros museus estão na mesma condição que o Museu Nacional. Para Brandão, comprova-se que os governantes não têm apreço pela pesquisa, não somente pelo incêndio, mas pelo sistema de pesquisa do Brasil, que tem sofrido de uma forma impressionante com queda de orçamento e descaso. “Sempre que se fala em reduzir custo, se pensa em reduzir custo no patrimônio e na educação”, conclui o professor.
O professor Márcio Ferreira da Silva, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, que fez o doutorado no Museu Nacional, muito emocionado, falou sobre o museu. “Ninguém tem ainda um balanço do prejuízo, mas já se sabe que é gigante. O Museu Nacional foi um dos maiores museus de história natural e de antropologia das Américas. Um dos mais importantes do mundo.”
Lamentando tamanha perda cultural e histórica, o etnólogo contou ainda sobre a vastidão do acervo, que incluía 20 milhões de itens, com alguns materiais inéditos e que, agora, já não mais podem ser publicados. Por fim, Márcio Silva explicou sobre a dimensão do Programa de Pós-Graduação no Museu Nacional. “Foi lá que aprendi antropologia, e sou grato a todos os professores e à instituição. O Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional produziu centenas de doutorados e mestrados em antropologia desde sua fundação, em 1969, e há centenas de pesquisas em curso.”
Solange Ferraz de Lima, diretora do Museu Paulista da USP, também lamenta a perda do acervo. Ela conta que o projeto de revitalização do Museu Nacional estava bem estruturado e iria ter seu início, o que foi inviabilizado pelo incêndio. Houve, inclusive, troca de experiências sobre como acontece esse processo e seus desafios, já que o Museu Paulista também está em fase de revitalização. Ela comenta ainda que os museus universitários são fundamentais para pesquisa e sua disseminação, através de exposições e atividades culturais para a sociedade.
A diretora explica como funciona a captação de recursos pelo Museu Paulista. Em primeiro lugar, toda a manutenção e atividades do museu são financiadas pela Universidade de São Paulo. Paralelo a isso, há a arrecadação feita pelas atividades culturais promovidas com a venda de ingressos e direitos de imagem, por exemplo. Porém, é permitido utilizar esse fundo apenas para determinadas atividades, de acordo com o regimento da unidade. Também é possível conseguir patrocínio para etapas de obras ou projetos culturais. Solange afirma que, por meio da Lei de Incentivo, já foram garantidos ao Museu Paulista diversos projetos de exposições e doações de acervos.
Para dar início à revitalização do Museu Paulista, Solange diz que é necessário encerrar o processo executivo, que está em andamento e tem previsão para ser finalizado em abril de 2019. Apesar de o museu contar com importantes iniciativas privadas, a diretora afirma que a USP foi responsável por todas as etapas, desde a transferência do acervo à locação dos imóveis.
Todo o cotidiano dessas instituições é bancado pelas universidades e, como qualquer outra unidade, está sujeito à arrecadação e ao orçamento que é repassado. A diretora ressalta que, mesmo sem uma política nacional de apoio, as universidades lutam para manter esses espaços. Por último, Solange lembra da importância dos museus universitários, que garantem o lugar especial do Brasil no cenário da produção científica.
Jornal da USP no Ar, uma parceria do Instituto de Estudos Avançados, Faculdade de Medicina e Rádio USP, busca aprofundar temas nacionais e internacionais de maior repercussão e é veiculado de segunda a sexta-feira, das 7h30 às 9h30, com apresentação de Roxane Ré. Você pode sintonizar a Rádio USP em São Paulo FM 93,7, em Ribeirão Preto FM 107,9, pela internet em www.jornal.usp.br ou pelo aplicativo no celular. Você pode ouvir a entrevista completa no player acima. |
“Perdemos todos”
“É muito triste se ver o trabalho e dedicação de 200 anos se perderem em algumas horas.” Foi assim que o zoólogo Fernando Luís Medina Mantelatto, professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, resumiu o que estava sentindo diante do incêndio do Museu Nacional. E Mantelatto – que também é diretor do Departamento de Recursos Humanos da Universidade – conhecia muito bem o museu tragado pelas chamas. Ele e seus alunos de mestrado e doutorado eram usuários frequentes do acervo ligado à coleção carcinológica, sobre crustáceos, do museu. “Desde 2011 até este ano o acervo, que trata da biodiversidade, nos ajudou muito nos projetos temáticos da Capes e da Fapesp”, conta.
Mantelatto pelo menos tinha algo a comemorar: boa parte do acervo que lhe servia de base de pesquisa e estudo está a salvo, já que há dois anos migrou para um prédio adjacente ao edifício principal do Museu Nacional. “A vice-diretora, Cristiana Serejo, me disse que parte do acervo está preservada, o que é reconfortante. Mas o material que estava sendo estudado em escritórios de pesquisa na sede do museu se perdeu. Ela está muito abalada com tudo o que aconteceu”, afirma. “Tanto se protelou ações proativas que agora é tarde. É impossível se recuperar o acervo do museu. E, com isso, perdemos todos: a sociedade, a ciência e a pesquisa”, concluiu.
Leia também a notas oficiais da Universidade de São Paulo, da Faculdade de Medicina, da FFLCH e do IEB sobre o incêndio no Museu Nacional.
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