Pesquisa da USP aponta invisibilização de homens e mulheres negros que participaram da Guerrilha do Araguaia. A partir da esquerda: Maurício Grabois, Helenira Resende de Sousa Nazareth, Osvaldo Orlando da Costa e Dinalva Oliveira Teixeira - Fotomontagem: Jornal da USP - Fotos: Wikipedia, Arquivo Pessoal/Marta Costta e Wikimedia Commons

Atuação de mulheres e homens negros na Guerrilha do Araguaia é analisada em estudo da USP

Pesquisa destaca a participação de lideranças negras no episódio, considerado um dos mais sangrentos da ditadura militar brasileira

 27/03/2023 - Publicado há 2 anos     Atualizado: 04/05/2023 às 16:40

Texto: Antonio Carlos Quinto
Arte: Carolina Borin Garcia

Uma das estratégias de manutenção do racismo no Brasil foi a de invisibilizar o negro em diversos episódios da história ou, quando não, relegá-lo a situações nada favoráveis. Esta invisibilidade ficou também evidente durante a ditadura militar, num dos eventos mais sangrentos da resistência ao regime: a Guerrilha do Araguaia (1967-1974), a luta entre integrantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e as Forças Armadas.

Exemplar da revista A História Imediata, com reportagem sobre a Guerrilha do Araguaia - Foto: Acervo pessoal do ex-deputado federal do PT José Genuino Neto

O historiador Janailson Macêdo Luiz, no entanto, busca lançar um novo olhar sobre o evento histórico a partir da importância da participação de pessoas negras, homens e mulheres, naquele período. “Não apenas isso, mas também destacar que houve uma sub-representação, seja na historiografia ou no debate público”, como destaca o historiador ao Jornal da USP.

Como lembra Macêdo, o confronto, que aconteceu ao longo do Rio Araguaia, teve grande impacto junto a moradores da confluência dos estados do Pará, Maranhão e atual Tocantins. “Foi a partir dos anos 1960 que este local recebeu milhares de migrantes, muitos negros, que chegavam à Amazônia Oriental buscando acesso à terra”, conta o historiador, autor do estudo de doutorado Lutas pela autonomia, sonhos de revolução: Uma história da participação negra na Guerrilha do Araguaia (1972-1974), que teve a orientação da professora Maria Helena Pereira Toledo Machado, defendido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

As pessoas migraram para aquela região atraídas pelo então plano de integração nacional do governo, nos anos 1970. “Começavam a construção da Transamazônica, as minerações e o avanço da fronteira interna. Muitos negros vieram para a região e isso impactou a população local”, como conta Macêdo, acrescentando que, entre as tradições negras daquela migração que ele denomina campo/campo, veio também o terecô. “Trata-se de um culto de origem africana muito praticado no Maranhão, de onde veio boa parte dos migrantes negros”, descreve.

Janailson Macêdo Luiz - Foto: Arquivo Pessoal

Invisibilidade negra

Desde os primeiros movimentos de migração dos negros à região, já ocorria o processo de invisibilização, segundo o historiador. Em seus levantamentos, Macêdo buscou dados no censo do ano de 1970. “Os dados, porém, não citam a população negra. Até porque o regime militar retirou do Censo, naquele ano, a qualificação cor”, relata.

A pesquisa teve início em 2014, quando Macêdo passou a exercer a docência em História na Universidade Federal Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), em Marabá (PA). Contudo, desde a sua graduação ele já estudava as populações negras. Em Marabá, ele percebeu que a presença negra e as histórias sobre o conflito ainda estavam muito presentes. “Foi quando decidi reunir informações, conversando com moradores locais e ouvindo histórias sobre negros e negras que participaram do conflito”, diz.

Recortes de jornais sobre a guerrilha do Araguaia - Foto: Acervo pessoal do ex-deputado federal do PT José Genuino Neto
Recortes de jornais sobre a guerrilha do Araguaia - Foto: Acervo pessoal do ex-deputado federal do PT José Genuino Neto

Um dos mais citados e lembrados, como conta o historiador, foi o guerrilheiro negro Osvaldo Orlando da Costa, ou o Osvaldão. “Ele era muito conhecido entre moradores e chegou a ser líder do Destacamento B, um dos três instalados na região”, destaca. Havia ainda, segundo o pesquisador, os destacamentos A  e C, e uma Comissão Militar. “Cada destacamento tinha, em média, 20 componentes e a Comissão Militar, entre 4 e 5 pessoas”, descreve Macêdo.

Além de Osvaldão, outra liderança negra que é destacada no estudo é a jovem Helenira Resende de Sousa Nazareth, ou simplesmente Helenira. Ex-estudante de Letras da USP nos anos 1960 e filiada ao PCdoB, ela se incorporou à guerrilha no início dos anos 1970. Além destes dois, outros participantes do conflito são citados no estudo, como Maurício Grabois, um dos fundadores do PCdoB, e Dinalva Oliveira Teixeira.

No seu estudo Macêdo conseguiu abordar, de forma mais aprofundada, nove guerrilheiros, negros e negras, que atuaram nos conflitos, além da forma como o cerco e repressão à guerrilha impactou diversas mulheres e homens negros moradores do Araguaia. Entre os guerrilheiros estudados, estão: Antônio de Pádua Costa (1943-1974); Dermeval da Silva Pereira (1945–1973); Dinalva Oliveira Teixeira (1945–1974); Francisco Manoel Chaves (1906 – 1972); Helenira Resende de Souza Nazareth (1944–1972); Idalísio Soares Aranha Filho (1947–1972); Lúcia Maria de Souza (1944–1973); Osvaldo Orlando da Costa (1938–1974) e Rosalindo de Souza (1940–1973).

Encantado

Osvaldão, além de exercer forte impacto junto à população local, era considerado por muitos como “um ser mítico”. E isso, de acordo com Macêdo, por ter estreita ligação com o terecô – religião afro-brasileira também conhecida como Encantaria de Bárbara Soeira ou Tambor da Mata – e os terecozeiros. “As tradições, costumes e práticas religiosas dos migrantes acabaram se incorporando à vida dos camponeses locais”, conta o pesquisador.

Guerrilheiro negro Osvaldo Orlando da Costa, ou o Osvaldão, era conhecido como um ser mítico - Foto: Acervo pessoal de Marta Costta

“No Araguaia, alguns dos guerrilheiros abordados mantiveram aproximação com os terecozeiros, que chegaram a dialogar politicamente com eles”, descreve o historiador em sua pesquisa. Esses terecozeiros, como ele lembra, também foram alvo das violências praticadas pelos militares contra a população tendo, inclusive, sua religião desrespeitada. Macêdo conta que o fato de Osvaldão ser considerado mítico e imortal pelos moradores do Araguaia pode estar relacionado a “encantamentos” ligados aos terecozeiros.

“Muitos moradores acreditavam que Osvaldão era capaz de transformar-se em pedra, árvore ou animal”

“Devemos lembrar que indígenas também foram objeto de violência dos militares, que os obrigavam, assim como aos camponeses, a serem guias do exército nas matas do Araguaia”, conta. Aliás, Macêdo fala de um episódio em que um indígena, guia do exército, foi obrigado a agredir uma terecozeira por ela ter se negado a fazer um ritual que atraísse Osvaldão.

Antes da guerrilha

O estudo de Macêdo também abordou a história da participação negra nas mobilizações comunistas no País. “Eu queria entender como se deu essa participação no PCdoB nos anos anteriores à guerrilha“, justifica. De acordo com o historiador, embora o PCdoB apresentasse uma centralidade na discussão sobre a classe e não contasse com pessoas negras nos níveis mais altos da estrutura partidária, diversas mulheres e homens negros tiveram destaque e apresentaram protagonismo entre seus quadros naquele período, principalmente entre o conjunto de guerrilheiros.

O pesquisador conta que mulheres e homens negros, integrantes da guerrilha, estão entre os mais recordados até hoje pelos moradores, assim como na literatura e produções audiovisuais que tomaram a Guerrilha do Araguaia como objeto. “Por vezes, esses personagens foram representados por um viés de heroicização, ou, em sentido inverso, acabaram alvo de estratégias negacionistas, que buscaram atenuar ou provocar o esquecimento dos crimes cometidos pela ditadura”, explica o historiador.

A Guerrilha do Araguaia, como cita o pesquisador em sua tese, foi um evento marcado pelo “terror de Estado” praticado pelos militares, que sitiaram a área e infringiram inúmeras violências contra os moradores, entre os quais muitos camponeses e indígenas.

Mulher, jovem, corajosa e determinada

Assim pode ser definida Helenira Resende de Souza Nazareth, estudante da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Naquele ano de 1968, ela tinha 23 anos. Não chegou a concluir o curso de Letras, pois foi presa após o Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) de Ibiúna, em São Paulo. “Ao sair da prisão, foi aconselhada por uma advogada do PCdoB, que conseguiu sua liberdade, a viver na clandestinidade, pois a qualquer momento o regime poderia procurá-la novamente”, como conta ao Jornal da USP a captadora de recursos para projetos sociais Marta Nazareth Costta, sobrinha de Helenira.

Marta Nazareth Costta - Foto: Arquivo Pessoal
Marta Nazareth Costta - Foto: Arquivo Pessoal
Helenalda Resende de Souza Nazareth - Foto: Arquivo Pessoal/Marta Costta
Helenalda Resende de Souza Nazareth - Foto: Arquivo Pessoal/Marta Costta

A partir do ano seguinte, 1969, ela foi vista poucas vezes. “Minha irmã Heleneide a encontrou no Rio de Janeiro. Daí para frente as notícias foram ficando cada vez mais difíceis”, lembra a professora universitária aposentada Helenalda Resende de Souza Nazareth, irmã de Helenira e que também estudou na USP, formando-se em Matemática. Atualmente é autora de livros didáticos.

As seis irmãs tinham o sobrenome Resende de Sousa Nazareth: Helenice, Heleneide, Helenalda, Helenilda, Helenoira e Helenira. Eram as filhas do médico baiano Adalberto de Assis Nazareth e de Euthália Resende de Souza Nazareth. “Meu avô foi o segundo médico negro a se formar pela Escola de Medicina de Salvador, na Bahia, em 1928”, conta orgulhosa Marta Costta. Das seis filhas, somente duas ainda vivem: Helenalda Resende de Sousa Nazareth e Helenoira Resende de Sousa Nazareth, que é mãe de Marta.

No Araguaia

A prisão no congresso, seguida da vida na clandestinidade, a coragem, a determinação e o ideal de liberdade compuseram o passaporte de Helenira, só de ida, para a região do Araguaia.

“Como pode uma jovem de 24 anos ter estado aqui, embrenhada nestas matas, com uma arma na mão, enfrentando militares do exército na luta pela democracia?”, diz Marta, reproduzindo as palavras ditas por ela quando esteve na região do confronto, em uma de suas duas visitas à região. “É preciso ter muita coragem!”.

Helenalda conseguiu acompanhar parte da trajetória de Helenira na clandestinidade por meio de bilhetes que chegavam, misteriosamente,  a Heleneide, sua outra irmã que na época era professora de genética da Faculdade de Medicina da Unifesp. De acordo com as irmãs e a sobrinha, a família teve informações de que Helenira teria ido para o Araguaia ainda em 1969, quando tinha 24 anos.

Helenira Resende de Souza Nazareth - Foto: Arquivo Pessoal/Marta Costta
Helenira Resende de Souza Nazareth - Foto: Arquivo Pessoal/Marta Costta
Helenira Resende de Souza Nazareth - Foto: Arquivo Pessoal/Marta Costta
Segundo consta no Memorial da Resistência de São Paulo, “Helenira ficou conhecida na região como Fátima e integrou o Destacamento A da guerrilha, que passou a levar seu nome após sua morte. Helenira Nazareth foi vítima de desaparecimento forçado durante a Operação Papagaio, realizada entre 18 de setembro de 1972 e 10 de outubro de 1972”. Era também conhecida no Araguaia como “Preta”, como recorda Marta Costta.

O sócio, Genoíno

“Osvaldão era a figura mais popular da guerrilha!”. Na entrevista ao Jornal da USP, José Genoíno, filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT), fala orgulhoso do líder do Destacamento B da guerrilha. “Dividimos a mesma choupana e por lá fiquei por dois anos. Osvaldão era um negro retinto, alto, calçava 48. Era uma figura mítica”, ressalta o ex-deputado federal e ex-presidente do PT.

Aos 77 anos, José Genoíno mostra vitalidade e disposição quando o assunto é a Guerrilha do Araguaia. “Tenho como dever cívico falar sobre aquele momento e resgatar a memória de alguns companheiros, como Osvaldão, Helenira e tantos outros”, destaca.

José Genuino Neto é ex-deputado federal do PT - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Naquele julho de 1970, aproveitando os festejos em São Paulo do tricampeonato mundial de futebol pelo Brasil, com a chegada da Seleção Brasileira, Genoíno, já na clandestinidade, partiu para uma viagem a Campinas, no interior de São Paulo. De lá, para Anápolis, em Goiás, e, posteriormente, para Imperatriz, no Maranhão. “Foram mais de cinco dias navegando em um barco. Aí fomos avisados de que estávamos compondo um grupo de guerrilheiros que tinha o objetivo de derrubar a ditadura militar”, conta.

No Araguaia, Genoíno adotou o nome de Geraldo, apelido “Gera”. “Cheguei como sócio de Osvaldão e sobrinho do João Amazonas, então conhecido como Cid.” Essa era uma das estratégias da guerrilha. Como conta Genoíno, ninguém da população sabia quem eram os recém-chegados. “Íamos nos integrando à vida dos camponeses e realizando os mesmos trabalhos. Osvaldão era garimpeiro, pescador, caçador e acabou adquirindo grande conhecimento de toda a região”, lembra Genoíno. “Lá, cada um tinha a sua história. O objetivo era cativar a população local e Osvaldão ficou por lá por cerca de seis anos.”

O ex-deputado traz viva em sua memória a data de sua chegada ao Destacamento B no Araguaia: 26 de julho. “Me lembro dessa data porque naquele dia recebi de Osvaldão um pequeno calendário. Foi o dia do assalto ao quartel de Moncada, durante a Revolução Cubana”, recorda. Além do calendário, Genoíno recebeu um revólver calibre 38 e uma espingarda 20. “Osvaldão, além de tudo, era um excelente atirador”, destaca.

Guerrilha invisibilizada

Para Genoíno, a invisibilização dos guerrilheiros e líderes negros na guerrilha ocorreu até porque, segundo ele, a própria guerrilha foi invisibilizada pelo regime militar. “Afinal, foram vários confrontos e a maior parte da população sequer teve conhecimento disso”, afirma.

Genoíno ficou no Araguaia até 1972, quando foi capturado por soldados do exército. Depois, permaneceu detido por cinco anos em diversos presídios. Após sua libertação, em 1977, ele informou diversas famílias sobre o paradeiro de alguns “companheiros” no Araguaia. Sobre Helenira, a “Preta”, soube que ela era do Destacamento A da guerrilha. “Eu a conheci aqui em São Paulo, no Congresso da UNE”, conta. Mas destaca que há uma lenda sobre a companheira que, “antes de sua morte, ela teria atingido um militar com um tiro.”

A pesquisa em Harvard

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Macêdo conta que seu estudo foi um dos 16 selecionados – entre 119, de diversas partes do mundo – para apresentação no Class of 2020 Mark Claster Mamolen Dissertation Workshop, realizado pelo Afro-Latin American Research Institute at the Hutchins Center for African & African American Research (ALARI), vinculado ao Hutchins Center for African & African American Research, da Universidade de Harvard, nos EUA.

Trata-se, segundo o historiador, de um seminário de teses que reuniu doutorandos que abordam estudos afro-latino-americanos de diversos países. Dois capítulos da tese foram apresentados e debatidos, um de forma on-line (2021) e outro de forma presencial, nos dias 13 e 14 de maio de 2022. “Os custos da viagem foram arcados pelo ALARI/Harvard”, como conta o historiador.

Mais informações: janailson@usp.br


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