Especialistas comentam decisão judicial que reconhece direito à autodeterminação de gênero

A decisão, tomada pela Justiça de Santa Catarina, não está relacionada à neutralidade de sexo, mas sim de gênero, e permite ao indivíduo não ser classificado como homem nem como mulher em sua documentação

 02/07/2021 - Publicado há 3 anos     Atualizado: 06/07/2021 às 10:12
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O debate evidencia o que nas ciências sociais e humanas se chama de “papel social de gênero”, um conjunto de comportamentos associados ao feminino e ao masculino – Foto: Freepik

 

Em Santa Catarina, o Tribunal de Justiça reconheceu o direito de uma pessoa de se declarar como não-binária, ou seja, que não tem gênero definido. O processo é inédito no Brasil e permitiu que o autor do pedido não seja classificado como homem nem como mulher na sua documentação. O caso nutriu a discussão sobre o direito à autodeterminação de gênero no Brasil, sendo o gênero neutro um conceito adotado pela Organização das Nações Unidas para “pessoas que nascem com características sexuais que não se encaixam nas definições típicas do sexo masculino e feminino”.

A decisão, tomada pela juíza Vânia Petermann, do Juizado Especial Cível e Criminal da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), não está relacionada à neutralidade de sexo, mas sim de gênero. O antropólogo e pesquisador Gibran Teixeira Braga, do Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença da USP e pós-doutorado no Programa de Antropologia Social da Universidade, desfaz a possível confusão que se faz entre neutralidade de gênero e intersexualidade, condição biológica de pessoas que desenvolvem características sexuais físicas que não binárias (femininas ou masculinas). Como explica Braga, a determinação do sexo é uma decisão tomada pelo médico no início da vida do sujeito, que pode enfrentar problemas de identificação no futuro, como a não identificação com o sexo designado ao nascer. “Já o gênero neutro é uma condição subjetiva que não diz respeito a essas características biomédicas, então a pessoa pode, pela medicina, ser facilmente enquadrada no sexo masculino ou feminino, mas a identidade de gênero é uma condição de autoclassificação, individual.” Portanto, a pessoa pode não se identificar com nenhum dos dois gêneros e optar por assumir ou reivindicar uma condição de gênero neutro, como no caso de Santa Catarina.

Gibran Teixeira Braga – Foto: Reprodução/Fapesp

A vitória do autor do pedido, agora sem gênero definido, vai de encontro a construções socioculturais e comportamentais consideradas enraizadas na sociedade, contemplando pessoas que se percebem, por exemplo, como homens, mas biologicamente sendo do sexo feminino, e vice-versa.  O debate evidencia o que nas ciências sociais e humanas se chama de “papel social de gênero”, um conjunto de comportamentos associados ao feminino e ao masculino.

Para Elival da Silva Ramos, professor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP, os documentos civis ainda refletem outros problemas, e o debate sobre neutralidade de gênero ainda é recente. Na certidão de nascimento, como em outros documentos, há espaço apenas para a determinação do sexo – masculino ou feminino –, que automaticamente determina o gênero. O documento não abre a possibilidade para que, no futuro, um sujeito do sexo masculino possa se declarar do gênero feminino, por exemplo. Outro problema é que o documento exclui pessoas intersexo.

Elival da Silva Ramos – Foto: USP

Do ponto de vista extrajudicial, não seria possível atender ao pedido de incluir como “não identificado” o sexo da pessoa no cartório. “O oficial do registro civil não tem autonomia para criar um novo modelo de certidão de nascimento, então ele teve que fazer o que está no documento médico, que registrava sexo masculino”, afirma o professor, mas ressaltando que a tendência é a adaptação da legislação a essas situações. “Eu acho que, do ponto de vista constitucional, há esse amparo, o que importa desses dados não é o que está simplesmente numa análise médica ou no que as pessoas veem na aparência, são dados pessoais.”

Existe uma perspectiva conservadora, na visão de Braga, que pensa masculino e feminino como dois polos opostos “e não como um contínuo”. “Então, essa limitação tem um impacto muito forte na autoestima e na cidadania dessas pessoas. Portanto, a gente deveria respeitar a autoclassificação e contemplar essas diversas expressões de ser humano, que são positivas. A diversidade é uma coisa positiva”, completa.

Nas palavras da juíza Vânia Petermann: “O Poder Judiciário, diante dos casos concretos, deve funcionar como respaldo jurídico, freando a discriminação das minorias e garantindo a todos o exercício pleno de uma vida digna. […] impedir as pessoas de serem o que sentem que são é uma afronta à Constituição”.


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