Conflito sobre dados da Amazônia derruba diretor do Inpe

Físico Ricardo Galvão foi exonerado após defender dados do instituto que mostram aumento do desmatamento na região. Cientistas falam em “sucateamento da credibilidade nacional”

 02/08/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 23/08/2019 às 15:01
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Ricardo Galvão – Foto: Marcos Santos / USP Imagens

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O diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, foi exonerado na manhã desta sexta-feira, 2 de agosto, duas semanas depois de desafiar publicamente o presidente Jair Bolsonaro a comprovar as acusações que levantara contra a instituição — ao dizer que os dados do Inpe sobre o aumento do desmatamento na Amazônia eram “mentirosos” e de que Galvão estaria agindo “a serviço de alguma ONG”. Nenhuma evidência concreta foi apresentada, mas Galvão perdeu o cargo assim mesmo, sob a justificativa de “quebra de confiança”.

Cientistas rechaçaram imediatamente a postura do governo. Um grupo de pesquisadores, denominado Coalizão Ciência e Sociedade, afirmou em nota que as recentes decisões contribuem para o “rápido sucateamento da credibilidade, nacional e internacional, construída com esforço e perseverança por gerações de cientistas”. 

“As críticas feitas não têm qualquer base científica e desconsideram a imensa contribuição que o Instituto Nacionais de Pesquisas Espaciais dá ao Brasil e ao mundo”, afirmou, ainda no início da semana, a Academia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp) — a exemplo de diversas outras entidades e especialistas, nacionais e internacionais, que se manifestaram publicamente em defesa do Inpe.

O anúncio da demissão foi feito pelo próprio Galvão, após reunião com o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, em Brasília. “Diante da maneira como eu me manifestei com relação ao presidente, criou-se um constrangimento, ficou insustentável, e eu serei exonerado”, disse o pesquisador, ao deixar o gabinete.

Em entrevistas à imprensa, no dia seguinte às declarações de Bolsonaro sobre os dados da Amazônia (20 de julho), Galvão disse que as acusações eram “ofensas inaceitáveis” e que o presidente agira de forma “covarde”, levantando suspeitas infundadas sobre o trabalho dele e do Inpe perante a opinião pública, como se estivesse numa “conversa de botequim”. Disse que não pediria demissão e desafiou Bolsonaro a repetir o que disse “frente a frente”, olhando nos seus olhos.

“Eu sou um senhor de 71 anos, membro da Academia Brasileira de Ciências, não vou aceitar uma ofensa desse tipo. Ele que tenha coragem de, frente a frente, justificar o que ele está fazendo”, disse Galvão ao jornal O Estado de S. Paulo. O encontro com o presidente nunca ocorreu, mas ele foi convocado a dar explicações em Brasília.

Formado em física e engenharia, Galvão é livre-docente da Universidade de São Paulo (USP) desde 1983 e estava como diretor do Inpe desde setembro de 2016, com mandato previsto de quatro anos — ou seja, até setembro de 2020. Antes disso, foi diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de Janeiro, e presidente da Sociedade Brasileira de Física (SBF), consolidando-se como uma das figuras mais experientes e respeitadas na comunidade científica nacional.

“O diretor do Inpe, Dr. Ricardo Galvão, é um cientista reconhecido internacionalmente, que há décadas contribui para a ciência, tecnologia e inovação do Brasil. Críticas sem fundamento a uma instituição científica, que atua há cerca de 60 anos e com amplo reconhecimento no País e no exterior, são ofensivas, inaceitáveis e lesivas ao conhecimento científico”, declarou a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Em ciência, os dados podem ser questionados, porém sempre com argumentos científicos sólidos, e não por motivações de caráter ideológico, político ou de qualquer outra natureza.”

O Inpe é um instituto público de pesquisa subordinado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), mas com autonomia administrativa. Seus diretores — assim como os dos outros institutos de pesquisa federais — são escolhidos a cada quatro anos, por meio de um processo seletivo, aberto à toda sociedade. As indicações passam por uma comissão de especialistas, incumbida de elaborar uma lista tríplice de nomes para seleção do ministro.

Galvão disse ter indicado a Pontes um nome de perfil técnico para substituí-lo, mas não revelou quem seria. A indicação natural dentro do Inpe seria o engenheiro aeroespacial Petrônio Noronha, atual diretor substituto e coordenador de Gestão Científica e Tecnológica do instituto, considerado um dos quadros técnicos de maior experiência no programa espacial brasileiro.

Pontes não falou com a imprensa. Pelas redes sociais, o ministro agradeceu Galvão por sua “dedicação e empenho à frente do Inpe”, e concluiu a mensagem com “abraços espaciais”.

Desmatamento

Tela de visualização de alertas de desmatamento do Deter na plataforma TerraBrasilis, mostrando a região do Xingu – Foto: Reprodução / Deter

O pano de fundo desse conflito é o aumento explosivo do desmatamento na Amazônia, registrado pelos sistemas de sensoriamento remoto do Inpe. Segundo os dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter) — que Bolsonaro chamou de “mentirosos” —, a área desmatada na Amazônia nos primeiros sete meses deste ano (janeiro-julho) foi da ordem de 4,5 mil quilômetros quadrados, 60% maior do que no mesmo período de 2018 (veja gráfico). 

A maior parte desse aumento ocorreu nos meses de junho e julho, quando as condições climáticas se tornam mais favoráveis ao desmatamento e há menos nuvens no céu para bloquear a visão do satélite. Todos os dados de monitoramento do Inpe são abertos para a sociedade e podem ser acessados gratuitamente por meio da plataforma digital TerraBrasilis.

Uma equipe de técnicos do Inpe esteve em Brasília na quarta-feira, 31 de julho, para explicar os dados a Pontes e ao ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. No dia seguinte, Salles anunciou em uma coletiva de imprensa, ao lado de Bolsonaro, que o governo vai contratar um novo serviço privado de monitoramento da Amazônia, capaz de produzir imagens diárias em alta resolução.

Ambos voltaram a criticar os dados do Inpe. “Os números, no meu entender, foram espancados, com o objetivo, ao que parece, de atingir o nome do Brasil e do governo”, disse Bolsonaro.

Entidades científicas e acadêmicas defenderam o trabalho do Inpe e criticaram duramente a postura agressiva e anticientífica do governo. 

“O insistente descrédito dos dados públicos pelo Presidente Jair Bolsonaro e parte de seus ministros não é fundamentado em argumentos técnicos sólidos e transparentes”, diz a nota da Coalização Ciência e Sociedade, assinada por 65 cientistas — entre eles, vários professores da USP. 

“Estamos vivenciando a inédita situação de termos um ministro de Meio Ambiente que não defende, ao contrário, ataca o meio ambiente, e um ministro de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações que é tímido na defesa da Ciência e silencia sobre a qualidade do trabalho de um dos mais conceituados institutos deste ministério e exonera seu diretor. Ambos contribuem assim com o rápido sucateamento da credibilidade, nacional e internacional, construída com esforço e perseverança por gerações de cientistas e tecnólogos ao longo de diferentes governos”, diz a nota.

“O Inpe reafirma sua confiança na qualidade dos dados produzidos pelo Deter. Os alertas são produzidos seguindo metodologia amplamente divulgada e consistentemente aplicada desde 2004. É amplamente sabido que ela contribuiu para a redução do desmatamento na região amazônica, quando utilizada em conjunto com ações de fiscalização”, diz uma nota oficial do instituto, publicada na quinta-feira. “O trabalho do Inpe sempre foi norteado pelos princípios de excelência, transparência e honestidade científica. A busca pelo aperfeiçoamento e pela melhoria constante da qualidade de seu trabalho também são componentes fundamentais de sua cultura técnica e científica.”

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