O processo de validação do conhecimento científico

Lia Queiroz do Amaral é professora titular aposentada do Instituo de Física da USP. Atualmente em regime de Professor Senior

 24/04/2017 - Publicado há 8 anos     Atualizado: 07/12/2018 às 12:38
Lia Queiroz do Amaral – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Todos que trabalham em pesquisa científica nas áreas de ciências exatas e também de ciências da vida e da natureza têm algum conhecimento sobre os critérios existentes na validação da produção científica, mas pouco sobre esse assunto está disponível para um público amplo.

Uma divisão essencial é a que existe entre as ciências exatas, as ciências biológicas e as ciências humanas, que partem de bases e conceitos diferentes. A ciência moderna se desvincula de conceitos filosóficos e define suas bases na matemática e na experimentação, mas as humanidades mantêm um vínculo forte com a filosofia.

Recentemente, focalizei as características das diferentes formas de pesquisa científica e sua divulgação para o público, em artigo publicado num e-book da ECA (1). Retomo neste artigo uma análise do processo de avaliação por pares, que domina a validação do conhecimento científico, mas que é, em geral, desconhecido do grande público.

A produção de conhecimento científico tem alguns aspectos semelhantes à produção cultural e artística, uma vez que é feita por seres humanos, mas tem diferenças marcantes, pois visa a alcançar um conhecimento especializado, objetivo e impessoal. A característica mais fundamental da pesquisa científica é seu encadeamento no tempo, cada passo fazendo referência ao que foi feito antes naquele assunto, montando uma rede extremamente complexa de informações interligadas, onde existe uma coerência interna, que define a estrutura do conhecimento.

Existe um acoplamento entre rigidez e liberdade na produção científica, e cada assunto de pesquisa segue uma dialética entre razão e intuição do pesquisador. O sistema de validação da ciência só pode realmente avançar com uma ética e uma moral que o cientista incorpore profundamente dentro de si, visando a alcançar a excelência no conhecimento do assunto ao qual se dedica.

A ciência moderna se desvincula de conceitos filosóficos e define suas bases na matemática e na experimentação, mas as humanidades mantêm um vínculo forte com a filosofia.

Ao longo da história existem descobertas e invenções que ocorrem fora do sistema acadêmico. Mas analiso aqui a produção científica feita em universidades e institutos de pesquisa, que segue o padrão de comunicação através de artigos especializados publicados em revistas científicas. Os editores das revistas de maior prestígio podem recusar o artigo sem explicações, ou então iniciar um complexo e longo processo (que pode durar meses ou mesmo anos), de revisão por pares, utilizado em todas as revistas científicas (2).

O artigo é enviado a cientistas especialistas na mesma área (pares), que julgam o mérito do trabalho, sem remuneração por esse serviço. O conteúdo dos pareceres (anônimo) volta ao autor, e segue-se um debate e revisões até que o trabalho seja aceito ou recusado. Os autores de trabalhos publicados passam a ser assessores no julgamento de trabalhos, também sem remuneração. Esse processo tem uma origem histórica, que levantei e vou relatar aqui, e também uma base ética e moral, sem a qual o controle da qualidade da produção científica deixa de funcionar.

A necessidade do debate de ideias

Em todas as culturas humanas existe um processo pelo qual os mais velhos transmitem aos mais jovens seus conhecimentos, e isso é feito de várias formas possíveis, mas sempre com uma relação pessoal entre quem detém o conhecimento e quem o recebe e incorpora. Universitas eram corporações medievais de estudantes e mestres, que depois tiveram reconhecimento de autoridades civis e religiosas, dando origem às Universidades de Bolonha (1088), Paris (1150), Oxford (1167), Cambridge (1209).

Nas universidades medievais europeias os estudos dividiam-se em artes, leis, medicina e teologia. As artes compreendiam o Trivium (Lógica, Gramática e Retórica) e o Quadrivium (Aritmética, Música, Geometria e Astronomia). A música vinha junto com a matemática, devido à teoria de harmonia. Ressalte-se que nas universidades não eram ensinados ofícios, o foco estava na vida intelectual, que antes do século 12 ocorria nos monastérios.

É interessante notar a semelhança entre a representação de uma aula universitária na Itália por volta de 1350, feita por Laurentius de Voltolina, (foto da Wikimedia Commons) e o ambiente como existe até hoje, quando um mestre tenta prender a atenção do grupo de estudantes, mas alguns conversam, outros dormem!

Universitas eram corporações medievais de estudantes e mestres, que depois tiveram reconhecimento de autoridades civis e religiosas, dando origem às Universidades de Bolonha (1088), Paris (1150), Oxford (1167), Cambridge (1209).

Por outro lado, tornou-se comum que intelectuais trocassem cartas num debate livre de ideias, e dezenas de sociedades foram formadas na Europa, a partir do século 14, inicialmente reunindo literatos e pintores. A primeira sociedade científica foi a Academie des Lynces (Roma, 1603), patrocinada pelo príncipe Federico Cesi, e Galileu Galilei foi um de seus membros. Deu origem à Pontifícia Academia de Ciências, que até hoje promove a pesquisa e examina questões científicas de interesse da Igreja.

A sociedade científica laica mais antiga que existe até hoje é a The Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge, fundada em 1660 por filósofos naturais e médicos, logo apoiada pelo rei Charles II. Um pouco depois surge a Académie des Sciences (Paris, 1666), fundada por Luís XIV por sugestão do ministro Jean-Baptiste Colbert, e atualmente integrada ao Institut de France.

As sociedades inglesa e francesa tinham filosofias diferentes desde seu início. O lema da Royal Society, Nullius in Verba (Nas palavras de ninguém), é o símbolo da liberdade de expressão e comprovação através de experiências.

Essas sociedades publicavam os trabalhos de seus membros, e havia discussões entre eles. A revista científica mais antiga, publicada desde 1665, é The Philosophical Transactions of the Royal Society (London). Em 1752 foi criado um Commitee on Papers para selecionar as publicações, o que pode ser considerado como o início da avaliação por pares (3).

Quanto à origem desse sistema, foi sugerido (4) ter ligações com a forma de publicação de livros no século 17, quando era necessária uma autorização real para a venda legal de livros impressos, que foi formalmente delegada às academias reais na sua fundação.

A sociedade científica laica mais antiga que existe até hoje é a The Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge, fundada em 1660 por filósofos naturais e médicos, logo apoiada pelo rei Charles II.

Os livros publicados pelas academias precisavam ser autorizados por dois membros do Conselho, que analisavam o texto, relatando que o conteúdo não tinha nada contrário aos propósitos da Sociedade, mais com o espírito de censura do que de controle de qualidade. Esse sistema existia apenas para livros, as discussões científicas nessas sociedades eram livres, mas o processo de tornar-se membro da sociedade era complexo, e por eleição.

As sociedades científicas fizeram uma transição da censura do Estado para autocrítica nos trabalhos científicos, e o processo todo mudou muito ao longo desses 300 anos. O sistema passou de censura externa para revisão interna, primeiro nas ciências naturais e muito depois nas humanidades e ciências sociais. O sistema de avaliação por pares atual certamente focaliza o conteúdo científico, mas o imprimatur que garante remonta às suas origens. Esse sistema define também a relação entre Ciência e Estado, pois a concessão de verbas públicas de pesquisa depende dele.

As discussões privadas, ou quase-privadas, do processo de avaliação por pares são carregadas de emoções e disputas entre grupos rivais, com muita competição, mas isso não costuma aparecer nos textos publicados. A revisão por pares não é necessária para se fazer ciência, mas a discussão entre pessoas que entendam dos assuntos é essencial para que o conhecimento possa avançar.

Só através da discussão as diferentes visões vão sendo depuradas e eventualmente convergindo para uma verdade impessoal. A ciência de fato se define ao longo do tempo, e quando pesquisadores independentes chegam ao mesmo resultado/conclusão.

Existe uma transmissão vertical de conhecimento (orientador/orientado ou mestre/discípulo) com forte envolvimento pessoal, uma relação que simula a relação parental, acoplada a uma transmissão horizontal “entre pares”, resultando grupos com uma dinâmica que vai definir o avanço científico ao longo das gerações. Um exemplo em física fundamental pode ser encontrado no livro que relata a história da relatividade geral e da cosmologia ao longo de um século de debates acalorados (5).

Situação na atualidade

O mercado de publicações científicas começou com as revistas publicadas por sociedades científicas, que eram mantidas com subscrições de bibliotecas, onde eram encontradas pelos pesquisadores. Esse sistema foi drasticamente alterado com o advento da Internet, surgindo a possibilidade de compra dos artigos pelos leitores.

Em seguida foi implantado o sistema pelo qual o autor/instituição paga à revista para abrir o acesso aos leitores. Esse sistema coexiste com o sistema usual de avaliação por pares, ou seja, o mérito continua sendo julgado nos moldes antigos.

Atualmente, mais de 2 milhões de artigos são publicados todo ano, em cerca de 30.000 revistas científicas, e não existe mais possibilidade de controle sobre o conteúdo da produção científica mundial, que movimentou cerca de 23,5 bilhões de dólares em 2011.

A validação da produção científica em escala mundial está se transformando, tanto por formas alternativas de avaliação como pela forma de fazer ciência. A antiga forma artesanal de trabalhar em Teoria e/ou Experiência foi modificada a partir do início dos anos 1960, inicialmente pelos supercomputadores e depois também pelos computadores pessoais. Surgiu a possibilidade de ciência computacional numérica, com simulação de experiências, e o surgimento de laboratórios internacionais de grande porte, como o CERN, na Europa, com investimentos bilionários.

A produção científica como um todo tende a perpetuar as linhas básicas já existentes, com muito pouca abertura para uma quebra nos paradigmas vigentes, e sobretudo sem perspectiva de solução em questões básicas referentes à Vida.

Foto da Wikimedia Commons

Referências

1 – Lia Queiroz do Amaral, “Liberdade de expressão na produção científica”, pp. 116 – 130. Em e-book “Comunicação e liberdade de expressão: atualidades”, Cristina Costa (org.), São Paulo: ECA-USP – 2016.

2 – Aprimorando a avaliação por pares: guias, tutoriais e manuais de boas práticas. SciELO em Perspectiva. SCIENTIFIC ELECTRONIC LIBRARY ONLINE, 2015.

3 – K. Fitzpatrick. The History of Peer Review, Planned Obsolescence: Publishing, Technology, and the Future of the Academy, 2009. New York: NYU Press.

4 – M. Biagioli. “From Book Censorship to Academic Peer Review”, Emergences: Journal for the Study of Media & Composite Cultures, v. 12, no. 1, 11-45, 2002.

5 – Pedro G. Ferreira. A teoria perfeita, Uma biografia da relatividade. Companhia das


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