O mistério de João: a flauta doce de Portinari

Por Luciana Gifoni, doutoranda da Escola de Comunicações e Artes da USP

 16/07/2021 - Publicado há 3 anos
Luciana Gifoni – Foto: Reprodução
Dentre a imensa produção do artista Candido Portinari (1903-1962), com mais de cinco mil obras catalogadas, meu olhar de flautista e pesquisadora se fixou numa obra em particular: o retrato que o artista fez de seu filho João Candido, aos quatro anos de idade, vestido de arlequim e soprando uma flauta doce. A compreensão da flauta doce representada por Portinari tem sido uma exploração instigante, alimentada de pequenas descobertas, de muitas perguntas e uma boa dose de desafios.

A tela a óleo Retrato de João Cândido foi pintada em 1943, no Rio de Janeiro. Desse período, não se conhece praticamente nada a respeito da prática da flauta doce no Brasil. Pouco se sabe, inclusive, da simples presença de instrumentos pertencentes a acervos familiares, ainda que não fossem tocados. Mas, ainda que não se tenha documentação disponível até o momento, é bem possível que houvesse, sim. A tese de Patrícia Michelini, A flauta doce no Brasil: da chegada dos jesuítas à década de 1970, aponta que os imigrantes alemães, dentre os quais músicos e professores, foram pioneiros em trazer o instrumento a partir do século XX, possivelmente entre os anos 1920 até 1950. Contudo, as atividades de performance e ensino de que se tem registros, em vários estados brasileiros, datam somente a partir da década de 1950. Esse é o cenário pelo qual emerge o mistério, ainda de portas bem fechadas para qualquer elucidação. Porém, há janelas, a começar pelo exame da própria obra.

Retrato de João Candido. Óleo sobre tela, 100 x 81 cm, Rio de Janeiro, 1943 – Foto: Acervo Projeto Portinari

A despeito de saber que o retratado era filho do artista, observemos a atmosfera de afeto e lirismo que permeia a imagem do menino. “Iluminado” a partir de um fundo escuro, ele tem a franja do cabelo muito lisa e bem penteada para o lado esquerdo, mas levemente bagunçada ao lado direito. Seus olhos bem abertos com cílios expressivos como os de um boneco, a ausência da representação de um nariz, sua orelha que acompanha o rosto discretamente virado para o lado esquerdo: tudo nos direciona a ouvir o som da flauta que ele sopra de uma forma lúdica e brincante. Não está a tocar propriamente uma música, pois não faz nenhum dedilhado, apenas segura a flauta doce, da maneira dedicada com que as crianças seguram seus brinquedos preferidos, usando as duas mãos, quase abraçando o instrumento. Fantasiado graciosamente de arlequim, seu traje carnavalesco e seu penteado ressaltam o zelo e o carinho que recebe. Com as pernas afastadas, sua postura alude ao que se chama na prática musical de “repouso ativo”, de quem experimenta o som e o toque do instrumento. Seus olhos “escutam” o som e parecem pedir a aprovação de alguém que se encontra fora da tela, no mesmo local.

Pela cor e pelo tamanho da flauta, trata-se um modelo soprano de madeira. O tubo tem um formato cônico, com o bocal estreitado e o pé bem alargado, mais próximo do modelo de flauta doce renascentista. Contudo, na cabeça da flauta, não há a janela de ar nem uma delimitação específica para o início do corpo, pois os furos já surgem logo abaixo do bocal. Não me arrisco a especular acerca do tipo de madeira ou do diapasão.

Caso tenha sido puramente elemento de criação do autor, a escolha da flauta doce para estabelecer um vínculo simbólico com a infância instiga, inclusive na perspectiva interna mais ampla do seu conjunto artístico. Entre o nascimento de seu filho, em 1939, até o ano de 1943, Portinari havia feito doze retratos de João Candido: seis deles quando era recém-nascido até um ano de idade; outros seis quando ele tinha de dois a quatro anos. Desta segunda metade, em todas as pinturas, a criança está com a fantasia de arlequim, acompanhada de objetos que sedimentam uma simbologia infantil, como cavalo, pipa, balão e bola, por exemplo. As outras cinco obras possuem fundo mais claro com formas sinuosas e irregulares, e as cores predominantes são tons brancos, vermelhos e azuis.

Retratos de João Candido em 1941 – Foto: Acervo Projeto Portinari

 

Por sua vez, o retrato com a flauta doce é o único com o fundo escuro e homogêneo, sobressaindo-se os tons terrosos, verdes e ocres nas cores da composição. Outra curiosa diferença é a ausência do nariz, enquanto nos outros cinco retratos ele está representado. Quanto à recorrência do arlequim, não se pode deixar de notar um diálogo com Pablo Picasso, em sua chamada fase rosa, especialmente no retrato que ele fez também de seu próprio filho (Paul Picasso vestido de arlequim, 1924). Picasso possuía uma verdadeira fixação na figura do Arlequim.

Retratos de João Candido em 1942 (à esquerda) e em 1943 (à direita) – Fonte: acervo Projeto Portinari

 

Por outro lado, numa perspectiva histórica do uso da flauta doce na educação musical, é curioso que Portinari tivesse escolhido essa imagem como objeto simbólico associado à infância no Rio de Janeiro de 1943. O levantamento da pesquisa citada, de Michelini, aponta que as primeiras iniciativas de aplicação da flauta doce na musicalização infantil ocorreram a partir da década de 1950 em vários estados brasileiros. Data deste período também o desenvolvimento do método Orff, que defendia o uso da flauta doce e foi amplamente acolhido pelos educadores brasileiros. Além disso, não havia lojas onde adquirir esses instrumentos, nem fabricantes, estava tudo no início. Ao contrário, na década de 1930, a popularidade da flauta doce estava bem consolidada na Alemanha, com a presença de fábricas, lojas especializadas, repertório e materiais pedagógicos para crianças e amadores, e também estudos mais direcionados ao ambiente universitário. Na Inglaterra, também havia um movimento se constituindo, sob o trabalho de Edgar Hunt e da família Dolmetsch, dentre outros.

Afinal, como explicar a flauta doce de João Candido na representação de Portinari? As portas do mistério continuam fechadas, mas as janelas me deixaram algumas pistas para uma chave possível. Para isso, é preciso olhar além da tela, é preciso traçar a relação da tela com a vida, nos registros e nas memórias da família do pintor. Creio que a chave do mistério está, sobretudo, nas mãos do menino João, que se tornou professor, escritor e pesquisador doutor com formação na área de Matemática e Engenharia de Telecomunicações. Em 1979, ele fundou o Projeto Portinari, em que atua como diretor-geral, buscando a preservação e a divulgação da obra de seu pai. Em 2004, lançou o Catálogo Raisonné da Obra Completa de Candido Portinari, acessível por meio do site www.portinari.org.br.

Haveria, de fato, a flauta doce do menino João? Com base nas verificações de Michelini acerca dos imigrantes, poderia pertencer ao acervo familiar dos avós italianos, provenientes da região de Vêneto. Os Portinari vieram na grande imigração do final do século XIX e se estabeleceram na pequena vila de Brodowski – brasileiramente, Brodósqui -, no interior paulista. O avô do menino João, seu Baptista, tocava tuba na banda de música de lá. Caso seja uma herança familiar, antevejo um percurso muito interessante de investigação, pois a flauta poderia ser até mesmo um objeto de relevância histórica, um original antigo que se conservou ao longo do século XIX.

Outra hipótese seria Portinari ter adquirido o instrumento em suas viagens pela Europa e Estados Unidos nos anos anteriores. Neste embalo especulativo, eu poderia seguir duas trilhas: antes ou depois do nascimento de João. Os países e lugares que conheceu estão bem documentados. Teria sido um presente de alguém, ou foi comprada por ele mesmo ou pela esposa? Já havia a intenção de presentear o bebê? No caso de ter sido obtida depois de seu nascimento, o mapeamento das viagens seria mais simples, entre os anos de 1939 e 1943. A família permaneceu boa parte deste período nos Estados Unidos, onde Portinari realizou novas obras e participou de exposições.

No próprio ano de 1943, Retrato de João Candido integrou uma exposição no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, sendo destaque dos jornais da época. Com o título Um quadro brasileiro atinge a quantia de 100 mil cruzeiros, a matéria do Diário da Noite (13/07/1943) apontou que, “apesar da rubrica de que o quadro não se achava à venda e pertencia à família do artista, surgiram numerosos pretendentes” e afirmou, em relação ao valor oferecido, tratar-se de quantia “jamais atingida por um quadro brasileiro”.

O legado cultural e artístico da obra de Candido Portinari, de natureza tão complexa e diversa, deveria despertar um maior interesse acadêmico na área musicológica. O interesse pela música tem uma dimensão significativa em sua produção artística. Seu comprometimento com as questões sociais, culturais e políticas brasileiras nortearam para o universo popular as suas representações de cenas e personagens musicais, sejam nos festejos rurais da sua querida Brodósqui, sejam nos retratos de músicos instrumentistas que atuavam na dinâmica das rádios, gravações e bailes da vida urbana. Considerado um adepto da segunda fase do Movimento Modernista, Portinari teceu vínculos de amizade com Mário de Andrade e Camargo Guarnieri.

Ainda não descobri o mistério da flauta doce de Portinari. Estabeleci um contato inicial com João Candido e o Projeto Portinari. Espero que este artigo impulsione as lembranças de familiares, amigos e admiradores de sua obra – especialmente, as memórias do “menino João” -, e que todos possam colaborar em fornecer acesso a esta grande casa onde habitam arte e cultura brasileiras. A casa do intelecto sensível de Candido Portinari.


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