Meu pai

Por Paulo Nussenzveig, professor do Instituto de Física da USP e pró-reitor de Pesquisa e Inovação da USP

 05/11/2022 - Publicado há 1 ano     Atualizado: 07/11/2022 as 15:37
Paulo Nussenzveig – Foto: IEA/USP

 

A maioria das pessoas que me conhecem sabe quem é meu pai. Muitos que não me conhecem, conhecem meu pai. O professor H. Moysés Nussenzveig é um dos mais reconhecidos cientistas do nosso País, com uma bela carreira, inicialmente como físico teórico e, nas últimas décadas, como pesquisador em ciências da vida. Ele nasceu em São Paulo, em 23 de agosto de 1932 (apesar de seus registros indicarem 16 de janeiro de 1933), como o terceiro filho de uma família de imigrantes poloneses. Meus avós chegaram ao Brasil em 1925, com um pequeno filho, meu tio Israel, fugindo da pobreza e do antissemitismo na Polônia. Se estabeleceram no Bom Retiro, onde meu pai cresceu frequentando o Jardim da Luz, local em que se dedicou à leitura de muitos livros.

Ouvi que o avô de um dos meus melhores amigos odiava meu pai: o pai dele o castigava a cada vez que trazia o boletim da escola, comparando com o do meu pai… Na juventude, tinha interesses múltiplos e chegou a contemplar uma carreira como diretor de cinema. Mas o gosto pela matemática e pelas ciências da natureza falou mais alto e, ao ganhar um concurso da Alliance Française, foi cursar o primeiro ano de matemática em Paris. Quando regressou, foi admitido na USP sem vestibular, para cursar física, onde se reencontrou com seu grande amigo, Ernst Hamburger.

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Fez doutorado na USP, sob orientação do professor Guido Beck (vovô Beck, que acreditei ser meu avô de verdade durante boa parte da minha infância; meu avô paterno, Michel, faleceu quando meu pai tinha apenas 18 anos). O saudoso professor J. J. Giambiaggi (“Bocha”) uma vez descreveu a excitação de Beck, ao relatar o novo estudante que recrutara: “Bocha, arranjei um escravo inteligente!” Sua tese de doutorado, sobre problemas de espalhamento e difração relevantes para o estudo do arco-íris, foi enviada por Beck ao nobelista Max Born. Ele a confiou ao seu assistente, Emil Wolf, que se encarregou da leitura no navio que o levou da Inglaterra aos Estados Unidos, onde assumiu uma posição na Universidade de Rochester, no estado de Nova York. Num jantar com Richard Feynman, na casa de Beck, foi instado a fazer nova “defesa” da tese. A “banca” o aprovou, novamente.

O arco-íris e a auréola foram grandes paixões da vida do meu pai, além da minha mãe, Micheline. Em 1963, já com uma filha pequena (Helena), por causa das dificuldades financeiras imensas para fazer ciência no Brasil, foram passar uma temporada nos EUA. O que deveria ser um estágio de um ano tornou-se uma diáspora de quase 13 anos. Inicialmente, foram para Nova York e, de lá, para Princeton, onde nasceu meu irmão, Roberto. Meu pai contava que o então diretor do Instituto de Estudos Avançados, J. Robert Oppenheimer, acreditou que o nome tinha sido homenagem a ele e presenteou meus pais com US$ 200. Como a situação no Brasil se agravou após o golpe militar, a família se mudou para Rochester, onde meu pai foi muito bem acolhido por Emil Wolf e encontrou um ambiente muito especial, juntamente com Leonard Mandel, Joe Eberly e outros. Foi lá que nasci e onde moramos até 1975, quando a abertura política no Brasil permitiu um retorno para a USP.

Minha mãe sempre sonhou em voltar para o Rio de Janeiro, onde moravam seus pais, seu irmão e vários amigos. Após quatro sofridos anos como diretor do Instituto de Física da USP, meu pai se tornou professor na PUC-RJ. Ainda não seria sua última instituição de afiliação. A situação econômica forçou uma mudança de vários docentes, muitos dos quais foram imediatamente e sabiamente absorvidos na UFRJ; outros, passaram por outras instituições, no percurso da PUC para a UFRJ. Seus trabalhos sobre difração e momento angular complexo o levaram a formular teorias bastante completas para os fenômenos do arco-íris e da auréola. No início dos anos 2000, usou seu ferramental para investigar a chamada absorção anômala nas nuvens: boa parte da radiação absorvida corresponde à luz que tunela para dentro das gotículas de água. O efeito é relevante para a compreensão do efeito estufa e sua influência no clima da Terra.

Progressivamente, se interessou sobre as possibilidades de usar luz para aprisionar esferas transparentes, que levou ao desenvolvimento de pinças óticas por um cientista a quem muito admirava, Art Ashkin (Nobel de Física aos 96 anos, num reconhecimento tardio e extremamente merecido). Já septuagenário e compulsoriamente aposentado da UFRJ, onde se tornou Professor Emérito, meu pai iniciou uma nova carreira, como pesquisador em ciências da vida. Fomentou a criação de um laboratório de pinças óticas na UFRJ, que coordenou (embora ele mesmo não fosse exatamente um pesquisador experimental…). Nunca cessava de me admirar o vasto conhecimento que adquiriu nesse novo campo de pesquisa. Até 2020, estava inteiramente atualizado nos mais recentes desenvolvimentos apresentados na literatura. Estudou a origem da vida e escreveu um livro para o público geral, publicado em 2019.

Além dos resultados científicos obtidos ao longo da carreira, que o tornaram mundialmente reconhecido, meu pai sempre teve paixão pelo ofício de professor. Sempre produziu cuidadosas notas de aula, muitas das quais tornaram-se livros. No Brasil, ele é muito conhecido pela coleção Curso de Física Básica. Em anos recentes, sempre que apresentava seminários e colóquios, formavam-se longas filas de estudantes pedindo autógrafos nos livros. Esse sempre foi o reconhecimento que ele mais apreciou: adorava conversar com jovens, buscando despertar a curiosidade em desvendar os mistérios do Universo. Ele criou e coordenou, por vários anos, a COPEA, inspirada no modelo do Collège de France, em que organizou vários memoráveis ciclos anuais de palestras abertas ao público geral. Novamente, alguns ciclos deram origem a livros. Seu engajamento na importância de melhorar a educação no nosso país o levou a juntar e liderar um grupo de cientistas notáveis para criar kits de experimentos a serem realizados por alunos da educação básica. O projeto Aventuras na Ciência levou à produção de kits em várias áreas, que precisam ser retomados e amplamente distribuídos. Por onde passava, sempre se identificava como “Professor Moysés”.

É evidente que ele influenciou minhas escolhas profissionais, pelo exemplo que sempre vi em casa. Relutei em estudar física, relutei mais ainda em ceder à paixão pela ótica quântica, a área de atuação dele! Ele jamais interferiu. Pelo contrário, sempre quis que eu buscasse meus próprios caminhos e que minhas conquistas fossem fruto dos meus esforços. Mas sei que sempre acompanhou com interesse, sofreu quando sofri, vibrou quando vibrei, se empolgou quando me empolguei. O exemplo dele, de sempre se guiar pela curiosidade, pela apreciação estética do valor da criatividade na investigação da natureza, me inspira profundamente. Ao mesmo tempo, o rigor na derivação dos resultados, na comunicação adequada daquilo que se obtém, sem exagerar, mas, ao mesmo tempo, sem minimizar sua importância sempre foram admiráveis.

Sua honestidade, integridade, a espinha dorsal de não se curvar diante de argumentos de autoridade ou de governantes autoritários representam um “sarrafo” elevado pelo qual meço a minha atuação. Embora sempre tenha mantido o foco nas suas atividades de pesquisa, nunca se furtou ao duro trabalho de defender a ciência dos frequentes ataques de governantes incautos, ou à tarefa de estruturar nossa comunidade em moldes próximos aos dos melhores centros mundiais. Participou de importantes comissões de planejamento das instituições científicas do País, como a comissão ABC-SBPC-Seplan, estruturando o PADCT. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Física e se candidatou à presidência da SBPC, mas nunca desejou ou gostou de assumir cargos administrativos. Em dezembro de 2021, quando o professor Carlotti me convidou para ser pró-reitor de Pesquisa, senti muita falta de poder discutir com ele antes de tomar a decisão. Precisei consultar outras pessoas e ponderar sozinho, em conversa imaginária com ele, em que eu mesmo assumi os dois lados da conversa. Quando consegui contar para ele que tinha sido convidado e aceitei, ele não estava “de muito papo”. Apenas me perguntou: “o que faz um pró-reitor de Pesquisa?”. Expliquei, e ele ficou em silêncio. Cutuquei: “você tem algum conselho para me dar?”. Respondeu apenas: “não aceite cargo nenhum!”. No dia seguinte, perguntei se lembrava da conversa, e ele disse que sim. Perguntei se lembrava do conselho que me dera. Respondeu prontamente: “não aceite cargo nenhum!”. Eu sabia que ele diria isso, assim como sabia que ele jamais fugiu de desafios na vida, sempre atuou onde achou que seria mais útil.

Apesar da vida muito centrada no trabalho, na carreira, na vocação e missão como cientista, sempre teve adoração pela minha mãe e, nos últimos anos, era obcecado em cuidar bem dela. Era muito jeitoso com crianças e adorava contar histórias. Meus filhos sempre foram muito próximos, afetivamente, dos avós. Aproveitaram muito a contação de histórias e desenvolveram gosto pela leitura, seguindo várias dicas do avô. Eles sempre admiraram a cultura literária e estabeleceram cumplicidade na apreciação de bons filmes. Descobriram Chaplin, Buster Keaton e outras preciosidades com o avô. A relação com a minha esposa, Monique, foi de cumplicidade crescente nos últimos anos. Do gosto compartilhado pela literatura policial, passou à confiança nela para assar um majestoso pernil para o Natal (sim, em casa judaica, comeu-se porco para a celebração pagã, com as costumeiras trocas de presentes). Nos últimos anos, aceitou que ela ajudasse a colocar em ordem suas pendências com a Receita Federal.

Não tenho dúvida que a pandemia teve efeito devastador nele, embora nem ele, nem minha mãe tenham contraído covid. Mas o primeiro semestre de 2020, em que ficou confinado e distante de todos, mexeu muito com ele. Em junho, teve um bloqueio renal e precisou ser operado, seguindo uma semana de antibiótico para controlar a sepsis. Mandei o isolamento às favas nesse momento e dirigi para o Rio para ficar com meus pais. Daí em diante, declinou muito rapidamente. Por motivo nunca esclarecido, foi reduzindo a alimentação até quase parar de comer. Emagreceu mais de quinze quilos. Foram feitos exames e nada foi constatado. Passei a dirigir para o Rio todo mês e passar ao menos uma semana com meus pais. Entre novembro de 2020 e abril de 2021, foi hospitalizado em todos os meses. Foi extremamente sofrido acompanhar o declínio acentuado dele e ver sua qualidade de vida ficar muito ruim. Aquela pessoa completamente independente e resoluta tornou-se totalmente dependente. Nesse ano de 2022, continuei indo ao Rio todos os meses, mas foram poucos os momentos em que conseguimos interagir mais e, em nenhum deles, foi possível realmente conversar com ele. No aniversário de 90 anos, amigos físicos gravaram breves mensagens de vídeo e o Diney inseriu legendas. Foi muito especial vê-lo se emocionar com as homenagens e rir com as várias histórias que contaram. Aquele riso alegre me levou às lágrimas.

Quero que ele descanse, que não tenha mais de carregar o fardo dessa existência tão dura. Como permaneceu lúcido, tinha plena consciência das suas limitações. Cuidarei da minha mãe sempre, ele pode ficar tranquilo. Amo muito o meu pai e continuarei sempre conversando com ele, fazendo os dois lados da conversa. Mas nunca deixarei de sentir a sua falta.


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