LHC: a aventura do conhecimento 100 metros abaixo da terra

Luiza Caires é jornalista, mestre em Comunicação pela ECA-USP e editora de Ciências do “Jornal da USP”

 06/08/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 07/08/2019 às 18:38

Luiza Caires – Foto: Arquivo pessoal

Nos 2000 ouvíamos falar, com um certo fascínio, de um gigantesco acelerador de partículas que estava sendo construído na Europa. A atração justificava-se, em parte, pela aura de mistério que envolve essa área da física, e em parte pela grandiosidade do que parecia estar sendo planejado. Alguns demonstravam seus temores sobre o que um equipamento que trabalha em uma escala tão grande de energia poderia causar – receios que se mostraram infundados. Da minha parte, apesar de não temê-lo, também não entendia rigorosamente nada do campo do conhecimento com que ele lidava, nem as noções mais básicas. Até porque, na minha época, na escola, parávamos praticamente em Newton, no máximo eletricidade, que era até aonde a física de vestibular ia.

Poucos anos depois, ainda sem saber direito o que era feito ali, achei que seria engraçado nomear de LHC a primeira rede wi-fi que instalaram na minha casa, um trocadilho com o nome do acelerador e com as iniciais do meu nome – Luiza Helena Caires. Eu jamais poderia imaginar que estaria em algum momento em cima dele – que dirá nos seus túneis, construídos entre a Suíça e a França a cem metros abaixo da terra.

Com o tempo, a oportunidade de trabalhar no Jornal da USP veio ao encontro da extrema curiosidade pela natureza que eu tinha, e acabei me apaixonando pelo jornalismo científico. Já havia devorado todo material de divulgação científica que encontrava tratando do LHC  para tentar tocar pelo menos na superfície do que estuda a física de partículas e de altas energias. Mesmo assim, não passava pela minha cabeça um dia visitar o LHC e sua sede, o Cern – a Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear. Um encontro mundial de jornalistas de ciência realizado na Suíça, pertinho do Cern, foi a senha para eu começar a ver o LHC como uma realidade não tão distante.

E o que, afinal, é o LHC? Se o Cern é o maior laboratório de física de partículas do mundo, tinha também que ter o maior acelerador. Esse é o LHC, sigla em inglês para Grande Colisor de Hádrons. Basicamente, uma máquina para acelerar partículas – os hádrons – e fazer com que elas colidam a velocidades acima de 99,9% a velocidade da luz. Com esses hádrons se chocando com uma energia tão intensa, quase mini Big Bangs de laboratório, eles se quebram em partículas fundamentais que não são encontradas sozinhas no Universo desde o Big Bang de verdade, como o quark, por exemplo. Deste modo, os cientistas podem estudar a matéria e as forças que interagem com ela no nível mais fundamental.

O que está longe de ser algo simples. É preciso pesquisar, testar, repetir várias vezes as colisões, analisar os dados que são gerados. Desenvolver tecnologia avançada. E isso também resulta em invenções colaterais, não planejadas. A World Wide Web, por exemplo, foi inventada no Cern. Quando estava trabalhando lá, Tim Berners Lee criou o protocolo WWW para poder compartilhar materiais e dados com cientistas em outros países. Há até uma plaquinha comemorativa na porta da sala onde ele inventou a Web.

Já faz alguns anos que o frisson da mídia a respeito do LHC deu uma baixada. Talvez por termos ficado mais distantes no tempo da descoberta, em 2013, do bóson de Higgs: um entre os motivos principais – mas nem de longe o único – pelo qual o acelerador foi construído.

Além disso, o LHC encontra-se desligado. Um período sabático para ele, não para cientistas e engenheiros que trabalham em seu upgrade (atualização) e ainda analisam o volume massivo de dados gerados antes de sua parada.

Se não fosse por este período de desligamento, que permitiu incluir em minha visita uma descida segura aos túneis dos detectores de partículas (cheios de radiação quando o acelerador está em funcionamento), eu não teria vivenciado integralmente uma das maiores experiências que tive. Maior não só por ser uma jornalista que trabalha com esses temas, mas como alguém que se fascina pela capacidade humana de fazer perguntas e se juntar em um projeto gigantesco como esse para procurar respostas. Eu acho que não há ninguém que trabalhe no Cern ou mesmo que vá apenas visitá-lo que não compreenda o sentido da palavra privilégio.

E se o assunto é tamanho, tudo lá é de proporções enormes, afinal estamos falando de uma máquina com 27 km de comprimento. Peças imensas (e também minúsculas, como um chip, mas feitas com o que há de mais avançado em tecnologia), equipes numerosas – cada cientista trabalhando num pedacinho do experimento e da teoria, cifras bilionárias (mas compensadoras, inclusive na economia dos países participantes, como contei aqui).

Brasileiros que desceram ao Atlas, do Cern, guiados por Manuella Vincter (ao centro, segurando o capacete), umas das pesquisadoras que lidera os trabalhos neste detector de partículas – Foto: Jornal da USP

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O ponto alto, é claro, foi a visita subterrânea aos detectores Atlas e Alice. Na ocasião, fui acompanhada também por brasileiros – professores experientes e jovens cientistas, o futuro da nossa ciência. Fico bem orgulhosa de ver meu país bem representado no maior experimento científico da história – tem bastante pesquisador brasileiro trabalhando com o LHC, localmente e a distância. Mas se há um local em que as fronteiras nacionais se amenizam, é o Cern. Todos, é claro, perseguem seus objetivos individuais e dos países que representam – ninguém aqui é ingênuo. Mas colaboração define bem melhor que concorrência o espírito da relação entre os cientistas por lá.

Colaboração define bem melhor que concorrência o espírito da relação entre os cientistas no Cern”

O que não quer dizer que se trate de um idílio para quem pesquisa: o ritmo é puxado. Correria, fins de semana e madrugadas de trabalho, pressões constantes. Do lado científico/acadêmico e do lado financeiro. Afinal, é preciso justificar e renovar diariamente a justificativa do investimento que é feito neste projeto. Não é fácil, em particular para cientistas de países que valorizam pouco este trabalho, como, infelizmente, tem sido o nosso. Conversei com uma professora brasileira e sua orientanda que trabalham, entre outros estudos, na busca de uma partícula candidata a explicar a matéria escura, que leva esse nome justamente por não se deixar “enxergar” por nenhum método ou instrumento, mas ter seus efeitos conhecidos, por exemplo, na dinâmica das galáxias. O tema é apontado por muitos como um dos maiores desafios da física atual. Nesta ocasião, as pesquisadoras estavam no Cern tendo pago elas próprias suas passagens e despesas – apesar de estarem desenvolvendo um trabalho ligado a sua universidade.

Isso é ter paixão pelo que se faz. Na minha convivência ao longo dos anos com cientistas, jamais encontrei algum deles que não fosse apaixonado pelo trabalho, mesmo com todas as dificuldades. Ou se encontrei, não me recordo. Todos tinham aquele brilho no olhar, que acabava contagiando quem os entrevistava. Isso não deve ser usado como justificativa para que o trabalho de pesquisa não seja recompensado financeiramente – todos precisam pagar suas contas e ter condições de desenvolver os projetos com tranquilidade.

E já que estou falando de cientistas, gostaria de encerrar este texto agradecendo a todos os brasileiros, e também estrangeiros, que me receberam de braços abertos no Cern. Lá, jornalista é muito bem tratado, até porque a divulgação científica está entre os pilares do empreendimento. Para esses especialistas, de nada adianta conhecer o âmago do universo e da natureza e não poder compartilhar isso com as pessoas. Um muito obrigada especial ao professor Marco Leite, do Instituto de Física (IF) da USP, que lidera um grupo de pesquisas da USP no Cern e foi meu “guia de luxo” durante esta visita, não deixando faltar nada para que eu fizesse meu trabalho. E também a quem me deu suporte aqui no Brasil, Marisilvia Donadelli e o professor Marcelo Munhoz, também conduzindo pesquisas do IF no Cern, superdidáticos e pacientes com profissionais da mediação como nós. Profissionais que tentam transmitir ao público um pouco do seu conhecimento e, sobretudo, seu encantamento pela Ciência.

Acompanhe a reportagem em vídeo, disponível no Canal USP, sobre o Cern e as pesquisas da USP feitas lá, e também a matéria especial que será publicada no Jornal da USP nas próximas semanas.

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