É possível reescrever o Estatuto da Criança e do Adolescente 34 anos depois?

Por Bruna Souza, doutoranda do Instituto de Psicologia da USP, e Rose Gurski, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e orientadora no Instituto de Psicologia da USP

 Publicado: 11/07/2024
Bruna Souza – Arquivo pessoal
Rose Gurski – Foto: Arquivo pessoal

 

 

Mais um 13 de julho. Trinta e quatro anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Quem tem escrito sobre isso? Vivemos numa época de especialistas acerca de qualquer temática. Certamente devem ter algumas pessoas especialistas nesse estatuto. Provavelmente pedagogos, psicólogos, assistentes sociais, advogados, entre outros.

Um adolescente que cumpre uma das medidas socioeducativas previstas no próprio ECA teria algo a dizer sobre esse aniversário? A pesquisa de doutorado que desenvolvo no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da USP, com orientação da professora Rose Gurski, busca escutar o que os adolescentes que cumprem a liberdade assistida têm a dizer sobre tal medida, mas não apenas sobre isso.

“Quem fez esse ECA?” foi a pergunta de um dos adolescentes que participam da pesquisa. A pergunta provocativa certamente nos leva à noção de que há um enorme abismo entre o que o estatuto prega e o que esses adolescentes experimentam em suas realidades. A partir desta primeira questão, uma série de outras se abriram. Que medida, afinal, esses adolescentes cumprem? Como são chamadas? Para que servem? Por que a cumprem?

Contraditoriamente, ao pretender garantir os direitos dos adolescentes, o próprio ECA retira o protagonismo dos jovens. Sabemos que os adolescentes do sistema socioeducativo brasileiro, por uma questão colonial que compõe a história do Brasil, pertencem à população que apresenta marcadores sociais específicos de raça, classe social e gênero. Há pesquisadores e pesquisadoras que, inclusive, entendem que a própria socioeducação e seus mecanismos constituem um produto da nossa história colonial enquanto País. As pesquisas que desenvolvemos no NUPPEC – Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (UFRGS) e no PSOPOL – Laboratório de Pesquisa em Psicanálise e Política (USP) problematizam e desenvolvem esta concepção.

Diante desse estranhamento com o livro do ECA, perguntei: “De que forma o ECA poderia ser interessante para os adolescentes?”. Aí surgiu a ideia: “E se fosse um aplicativo?” Na tentativa de contribuir para que estes adolescentes protagonizem a escrita de suas vidas, escrevendo um pouco sobre as condições da política socioeducativa, trazemos um recorte de uma das conversas na instituição socioeducativa:

“Um aplicativo, a princípio, que disponibilizasse o ECA, mas, aos poucos, um aplicativo que facilitasse, organizasse e viabilizasse diferentes demandas e necessidades decorrentes do cumprimento de qualquer medida socioeducativa. Ideias como: agenda de compromissos vinculados à medida, datas e horários de audiências, vagas de emprego e cursos, ‘escadinha’ das medidas – um modo de localizarem a medida que cumprem no rol de diferentes medidas socioeducativas, bem como o nível de gravidade de cada uma e suas implicações sociais e jurídicas. E, também, uma espécie de mural de serviços prestados pelos adolescentes a fim de divulgação e indicação, criando talvez uma rede entre eles. Como a Vitória (nome fictício) que, em todo encontro, traz sua bolsinha de fazer unhas a cinco reais.”

Poderia a construção de um aplicativo sobre o ECA fazer parte da política socioeducativa e do cumprimento das medidas? Como, afinal, podemos colaborar com a construção de sentidos e significações sobre o cumprimento da medida socioeducativa? Será que outras posturas com os adolescentes poderiam gerar efeitos na relação com o que se compreende como adolescência infratora?

Espera-se que, nos próximos aniversários do ECA, abram-se espaços plurais e protagonistas para as vozes dos jovens da socioeducação, seja através de escritas, de aplicativos, ou mesmo grafitando suas ideias pelas ruas das cidades!

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