



Um adolescente que cumpre uma das medidas socioeducativas previstas no próprio ECA teria algo a dizer sobre esse aniversário? A pesquisa de doutorado que desenvolvo no Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica da USP, com orientação da professora Rose Gurski, busca escutar o que os adolescentes que cumprem a liberdade assistida têm a dizer sobre tal medida, mas não apenas sobre isso.
“Quem fez esse ECA?” foi a pergunta de um dos adolescentes que participam da pesquisa. A pergunta provocativa certamente nos leva à noção de que há um enorme abismo entre o que o estatuto prega e o que esses adolescentes experimentam em suas realidades. A partir desta primeira questão, uma série de outras se abriram. Que medida, afinal, esses adolescentes cumprem? Como são chamadas? Para que servem? Por que a cumprem?
Contraditoriamente, ao pretender garantir os direitos dos adolescentes, o próprio ECA retira o protagonismo dos jovens. Sabemos que os adolescentes do sistema socioeducativo brasileiro, por uma questão colonial que compõe a história do Brasil, pertencem à população que apresenta marcadores sociais específicos de raça, classe social e gênero. Há pesquisadores e pesquisadoras que, inclusive, entendem que a própria socioeducação e seus mecanismos constituem um produto da nossa história colonial enquanto País. As pesquisas que desenvolvemos no NUPPEC – Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (UFRGS) e no PSOPOL – Laboratório de Pesquisa em Psicanálise e Política (USP) problematizam e desenvolvem esta concepção.
Diante desse estranhamento com o livro do ECA, perguntei: “De que forma o ECA poderia ser interessante para os adolescentes?”. Aí surgiu a ideia: “E se fosse um aplicativo?” Na tentativa de contribuir para que estes adolescentes protagonizem a escrita de suas vidas, escrevendo um pouco sobre as condições da política socioeducativa, trazemos um recorte de uma das conversas na instituição socioeducativa:
“Um aplicativo, a princípio, que disponibilizasse o ECA, mas, aos poucos, um aplicativo que facilitasse, organizasse e viabilizasse diferentes demandas e necessidades decorrentes do cumprimento de qualquer medida socioeducativa. Ideias como: agenda de compromissos vinculados à medida, datas e horários de audiências, vagas de emprego e cursos, ‘escadinha’ das medidas – um modo de localizarem a medida que cumprem no rol de diferentes medidas socioeducativas, bem como o nível de gravidade de cada uma e suas implicações sociais e jurídicas. E, também, uma espécie de mural de serviços prestados pelos adolescentes a fim de divulgação e indicação, criando talvez uma rede entre eles. Como a Vitória (nome fictício) que, em todo encontro, traz sua bolsinha de fazer unhas a cinco reais.”
Poderia a construção de um aplicativo sobre o ECA fazer parte da política socioeducativa e do cumprimento das medidas? Como, afinal, podemos colaborar com a construção de sentidos e significações sobre o cumprimento da medida socioeducativa? Será que outras posturas com os adolescentes poderiam gerar efeitos na relação com o que se compreende como adolescência infratora?
Espera-se que, nos próximos aniversários do ECA, abram-se espaços plurais e protagonistas para as vozes dos jovens da socioeducação, seja através de escritas, de aplicativos, ou mesmo grafitando suas ideias pelas ruas das cidades!
________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)