Foto: Stewart Butterfield/Wikimedia Commons CC 2.0 com edição de Jornal da USP
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“Imagine, vovó, um aluno defendendo ditadura, opressão, injustiça, reação?”
(Carlos Fuentes)1
“É a mais antiga especialização social, a especialização do poder, que está na raiz do espetáculo”
(Guy Debord)2
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Salvo engano, aquele que se encontra diante de um texto orientado por datas tende a se sentir mais confortável, caso a leitura se oriente em sentido progressivo.
Linear, à maneira como se lê no Ocidente, o leitor habituou-se a supor que as partes do texto alternam causas e consequências, quase sempre nesta ordem, o que faria do evento e da matéria histórica uma sucessão de etapas algo estanques e irrepetíveis, cujo destino seria a contínua modernização, o rumo ao futuro – ainda que isso implique retroceder nos modos e restringir a nossa cota de humanização.
Com o advento do Romantismo, no final do século XVIII, a concepção burguesa, individual e positivista nos deixou mais inclinados em examinar o resultado das ações, em detrimento da investigação das motivações, métodos e procedimentos que as embalaram.
Experimentemos percorrer a cronologia em sentido contrário, de maneira que revisitemos o passado e o ano de 1968 seja mais que um estágio da evolução humana. Para começar, o que liam os alunos e trabalhadores espalhados pelo Ocidente naquele ano?
Em 2017, a Gallimard reimprimiu A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord, cinquenta anos após a primeira edição que circulou em Paris, pela Éditions Buchet-Chastel. Começo por ele porque foi uma referência obrigatória para qualquer cidadão francês, antes e durante o Maio de 1968, na França: “O espetáculo, compreendido em sua totalidade, é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real […] é o coração do irrealismo da sociedade real” (Debord, 2017, p. 17).
Cento e vinte anos depois da publicação do Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels (1848), o ano de 1968 assinalou a postura de resistência sociocultural da sociedade em geral contra as medidas adotadas por diversos países, no Ocidente. O momento foi propício para que se colocasse tudo em questão.
O homem voltava a se sentir como protagonista da história, contra os sintomas provocados pela modernização do mundo e o acirramento da “luta de classes”, conforme descrita por Marx e Engels (2011, p. 45):
“A sociedade burguesa, com suas relações de produção e de troca, o regime burguês de propriedade, a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou”.3
O que se discutia, dentro e fora dos circuitos acadêmicos, não era exclusividade dos intelectuais franceses. Desde 1964, outro livro circulava tanto nas Américas quanto na Europa. Tratava-se de A Ideologia da Sociedade Industrial, em que Herbert Marcuse (1973, p. 97) desafiava o caráter padronizado e contraditório do homem autointitulado pós-racionalista:
A unificação dos opostos que caracteriza o estilo comercial e político é uma das muitas formas pelas quais a locução e a comunicação se tornam imunes à expressão de protesto e recusa. Como poderão essa recusa e esse protesto encontrar a palavra acertada, quando os órgãos da ordem estabelecida admitem e anunciam que paz é na realidade a iminência da guerra, que as mais recentes armas têm etiqueta de preço lucrativa e que o abrigo antiaéreo pode significar aconchego?4
O pensamento solidário rondava o Ocidente. Do Canadá, naquele mesmo ano, Marshall McLuhan (2000, p. 11) alertava para os efeitos nocivos dos meios de comunicação de massa sobre o homem e sua percepção sobre as obras de arte: “À medida que tecnologias proliferam e criam séries inteiras de ambientes novos, os homens começam a considerar as artes como ‘antiambientes’ ou ‘contra-ambientes que nos fornecem os meios de perceber o próprio ambiente”.5
Três anos antes dele, outro alemão detectaria os vários sentidos da expressão “materialismo mecânico”, em clara referência à dialética hegeliana. Segundo Erich Fromm (1975, p. 20), “Marx combateu esse tipo de materialismo mecânico ‘burguês’, ‘o materialismo abstrato da ciência natural, que excluía a História e seus processos’, e para seu lugar advogou o que denominou […] ‘naturalismo ou humanismo [que] é diferente tanto do idealismo quanto do naturalismo e, ao mesmo tempo, constitui a verdade que os unifica’.”6
Esses e outros livros provavelmente circulavam entre o continente americano e a Europa. Particularmente os estudantes de Nanterre – comuna situada a alguns quilômetros de Paris –, carregavam os livros de Henri Lefebvre. Àquela altura, o sociólogo francês já havia publicado diversos estudos, dentre os quais Posição: Contra os Tecnocratas, editado em 1967. Desconfiado do culto desmedido da técnica, sacralizada em detrimento da condição humana, Lefebvre (1969, p. 44) diagnosticou o enorme hiato entre o “crescimento econômico” e o “desenvolvimento da vida social”.7
Quase vinte anos antes, Henri Lefebvre havia publicado O Marxismo8 – editado pela PUF (Presses Universitaires de France) em 1948 – em que celebrava o centenário do Manifesto Comunista. Qual era a premissa do sociólogo francês? A de que haveria apenas três formas de o homem se posicionar perante o mundo: a “concepção cristã”, que supunha a “hierarquia estática dos seres”; a “concepção individualista”, a partir do século XVI, em que a razão passou a embalar o pensamento, mais tarde atrelada “ao liberalismo, ao crescimento do Terceiro Estado”; e a “concepção marxista do mundo”, orientada pela “realidade natural histórica e lógica das contradições” (Lefebvre, 2010, pp. 11-13).
O mais curioso é que esse modo ternário de conceber o mundo parecia reverberar as palavras de um dos maiores teóricos russos sobre o pensamento marxista. Na conferência Da Filosofia da História9, pronunciada por Guiorgui Valentinovitch Plekhanov em 1901, o historiador defendia a existência de três “concepções da História”: a “teológica”, a “idealista” e a “materialista”.
Para Plekhanov (2018, p. 46), “a ideia fundamental de Marx se reduz ao seguinte: as relações de produção determinam todas as outras relações que existem entre os homens na sua vida social. As relações de produção são determinadas, por sua vez, pelo estado das forças produtivas”.
E já que menciono a efetiva participação do homem nas fases da História, será mais que oportuno relembrar a síntese de Guy Debord, em 1967, em torno da postura da espécie, em acordo com os estágios de nossa relativa “evolução”:
A última fase da dominação da economia sobre a vida social havia entranhado na definição de toda realização humana uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente de ocupação total da vida social pelos resultados acumulados da economia conduz ao desligamento generalizado do ter para o parecer (Debord, 2017, p. 22 – grifos do autor).
Se há uma palavra com que poderíamos definir a mentalidade vigente em torno dos eventos de 1968, ela seria concretude. Seria em favor da materialidade das coisas, da postura crítica e da ênfase no concreto – e não de uma concepção abstrata, idealista e superficial – que o homem articulava a palavra naquele tempo.
Não será por acaso que Marcuse (1973, p. 103) alertasse para o fato de que a “a linguagem funcional é radicalmente anti-histórica”. Também por isso, será relativamente fácil perceber que não haja nada de novo no discurso pretensamente “modernizador”, “patriótico” e economicamente “liberalizante” que, inclusive, uma parcela considerável de nossa intelligentsia voltou a repetir nos últimos tempos. Como disse Debord (2017, p. 21), o espetáculo “é o sol que nunca se põe sobre o império da passividade moderna”.
Em nossos dias, a negação de atos ignominiosos, embora comprovados pelos testemunhos e pela historiografia; a precarização dos profissionais da Educação; o menor investimento em bolsas e outros modos de estimular a realização de pesquisas; o congelamento dos gastos com a seguridade social etc. compõem um conjunto de medidas que nos impele a revisitar os ensinamentos de Erich Fromm, Marschall McLuhan, Herbert Marcuse, Guy Debord, Henri Lefevbre e Carlos Fuentes, entre outros, em busca de argumentos para o legítimo posicionamento.
Referências Bibliográficas
[i] Em 68: Paris, Praga e México. Trad. Ebreia de Castro Alves. Rio de Janeiro: Rocco, 2008, p. 147.
[i] La Société du Spectacle. Paris: Gallimard, 2017, p. 25.
[i] Manifesto Comunista. 1a reimp. da 1a ed. rev. Trad. Álvaro Pina; Ivana Jinkings. São Paulo: Boitempo, 2011.
[i] A Ideologia da Sociedade Industrial: o Homem Unidimensional. 4a ed. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.
[i] Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. 10a ed. Trad. Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2000.
[i] O Conceito Marxista do Homem. 6a ed. Trad. Octavio Alves Velho. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
[i] Posição: Contra os Tecnocratas. Trad. T. C. Netto. São Paulo: Documentos, 1969.
[i] Marxismo. Trad. William Lagos. Porto Alegre: L&PM, 2010.
[i] In: O Papel do Indivíduo na História. 3a ed. São Paulo: Expressão Popular, 2018 [tradução não disponível].
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