Trabalhar com raça/cor visando implementar políticas públicas para equidade racial é um enorme desafio. É fundamental entender que raça, nesse sentido, designa o modo como grupos de pessoas foram e são classificados e localizados nas estruturas de uma determinada sociedade e o que essa localização define em termos de acesso a bens, direitos e respeito ao longo de toda uma vida. Isso informa se uma pessoa, de um grupo social específico, em razão de seus traços fenotípicos (cor da pele, tipo de cabelo, formato do nariz e da boca) tem maior ou menor acesso à saúde, à educação, à moradia, ao emprego formal, ao lazer, à liberdade, a não ser alvo de violência, entre outros aspectos que são indicadores de respeito aos direitos fundamentais que se encontram no cerne da dignidade humana.
Assim, para a equidade racial e o aumento da representatividade negra, o que importa não é o que cada um entende ser e sim o modo como é visto pelos outros (a sociedade) e o que essa mesma sociedade, com suas hierarquizações, estabelecerá, a priori, como papéis adequados para o grupo de pessoas com o mesmo fenótipo. Elucida, também, as barreiras que esse grupo terá que superar para desempenhar outros papéis e ter um estilo de vida reconhecido e respeitado. É a isso que classificação e localização social se referem.
A história nos ensina que a autodeclaração (dizer-se negro ou afrodescendente), embora seja um direito e, por isso, deve ser respeitado, não é suficiente em um país no qual sempre se marcou as pessoas por estarem mais ou menos próximas do fenótipo mais nítido do que se entendia como africano negro subsaariano. Umas das formas que o brasileiro sempre utilizou para classificar as pessoas foi a do critério da “boa aparência”, que pode facilmente ser traduzido como estar próximo da brancura e, por decorrência, ser considerado humano.
Uma metáfora para entender esse fenômeno, em países multirraciais como o Brasil, é imaginar que diferentes pessoas entrem em determinado trem que pare em várias estações. Esse trem parte de uma região periférica onde a maioria da população residente é negra retinta, com fenótipo bem marcado. Nesse contexto, uma pessoa descendente de africanos negros, mas que tenha um fenótipo pouco evidente ou pouco marcado, poderá ser classificada como branca. Ao longo do trajeto, em razão de cada contexto social, o modo como poderá ser classificada variará. Ao chegar a regiões mais abastadas nas quais haja predominância de pessoas branquíssimas (cf. Lia Schucman), essa pessoa, que embarcou na periferia como branca, poderá ser classificada como negra.
No Brasil, são raros os espaços nos quais encontramos os branquíssimos caucasianos descritos por Schucman. Aqui, de modo geral, a brancura é associada ao branco “encardido” (idem). Ou ao branco com “as mãos mulatinhas” (sic). Esse é o dilema que se cria quando se lida com a questão da miscigenação, ou da mestiçagem, como se prefere falar por aqui. Uma pessoa pode se autoidentificar como negra por afrodescendência (mesmo que não tenha fenótipo bem marcado) e pode construir sua identidade subjetiva como tal. Contudo, poderá ter dificuldades para alegar, para efeitos de equidade racial, que seja sempre marcada/classificada, socialmente, como negra.
Sabemos que a classificação social depende de contextos. Os contextos são históricos e variam. Entretanto, o fato de variarem não significa que não seja possível dizer quem é negro e quem não é. Ao contrário, os contextos históricos revelam quem, em continuidade, tem sido sistematicamente marcado como negro, alvo de exclusões no acesso a bens e direitos, geração após geração. Em razão disso, as políticas públicas com a meta de ampliar a representatividade de negros, ou focalizadas na equidade racial, devem incidir sobre quem é e sempre foi, no trem da vida, e em todas as estações e contextos, classificado socialmente como negro.