Professor da USP mostra as diferentes leituras da Revolução Russa

Angelo de Oliveira Segrillo apresenta visões diversas do evento histórico que completa 100 anos em 2017

 23/02/2017 - Publicado há 7 anos
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Manifestantes durante a Revolução Russa de 1917 - Foto: Wikimedia Commons
Manifestantes durante a Revolução Russa de 1917 – Foto: Wikimedia Commons

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Cem anos após a derrubada da monarquia absolutista dos czares russos, substituída pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), ainda há novas leituras e divergências brotando entre os historiadores e estudiosos da Revolução Russa de 1917. Em celebração a esse centenário, o Serviço Social do Comércio (Sesc) realiza um ciclo de palestras a partir de fevereiro para antecipar um seminário internacional que ocorrerá em setembro. A primeira delas será no dia 23 de fevereiro, às 19h30, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc, com o tema
História e Historiografia da Revolução Russa, ministrada pelo professor Angelo de Oliveira Segrillo, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Entre 1985 e 1992, Segrillo esteve na então URSS, onde obteve seu mestrado pelo Instituto de Moscou e teve a chance de presenciar a derrocada do regime socialista in loco. Com essa experiência, o professor baseia sua palestra no artigo Historiografia da Revolução Russa: Antigas e novas abordagens, que escreveu em 2010 para a revista História, Historiadores, Historiografia, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

“Há muito poucos trabalhos que reúnam a perspectiva dos próprios historiadores russos em relação à Revolução de 1917”, diz o professor. “Tem muita coisa sobre os textos dos historiadores ingleses, norte-americanos, mas, para ler sobre a perspectiva dos russos sem ser na língua russa, é muito difícil. Então eu fiz, nesse artigo, um apanhado bem completo da visão ocidental e também da visão soviética, em seus vários momentos e tendências, tratando da revolução no sentido stricto sensu, isto é, especificamente dos acontecimentos de 1917.”

Angelo Segrillo fala das várias interpretações históricas da Revolução Russa - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Angelo Segrillo fala das várias interpretações históricas da Revolução Russa – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Por meio de uma observação cronológica dos textos, Segrillo identifica e esmiúça em seu artigo as diferentes leituras feitas por grupos de historiadores, de acordo com seu tempo e origem. Ele aponta que, diferentemente de outros eventos históricos, a Revolução Russa foi documentada conforme ocorria.

“O historiador profissional, à exceção de historiadores pós-modernos, tende a não escrever sobre seu próprio tempo, para que seja possível reunir as fontes primárias e documentos originais e analisá-los de maneira distanciada, o que chamamos de recuo histórico. Por isso a Revolução Francesa, por exemplo, só foi ter sua história escrita muito depois de ter ocorrido. A Revolução Russa, porém, teve panfletos e documentos oficiais arquivados desde o início pelo Istpart, uma seção de documentos históricos do Partido Comunista, devido à preocupação dos bolcheviques em registrar e preservar os fatos. Isso proporcionou aos historiadores russos, alguns dos quais foram inclusive chamados a participar do arquivamento do material, a chance de investigar o que estava ocorrendo ainda na década de 1920”, explica.

Essa possibilidade durou até o final da década de 1920, período em que havia no Partido Comunista animados debates e uma certa pluralidade de ideias (dentro dos limites ideológicos do partido) entre seus membros de diferentes correntes. A partir da ascensão de Josef Stálin ao poder, entretanto, isso acabou, e passou a valer somente a versão oficial da história, contida na obra Kratkii Kurs (ou História do Partido Comunista e de Toda a União (bolchevique): Breve Curso), tomada “como se fosse uma bíblia da história da Revolução Russa”, sob pena de ostracismo ou mesmo morte para quem escrevesse coisa diferente.

Afora o trabalho desses historiadores, naquela época a maior parte dos escritos sobre a revolução era composta de textos autobiográficos de participantes ou testemunhas dela, emigrados russos na Europa e nos Estados Unidos ou análises jornalísticas de correspondentes do Ocidente para jornais e revistas da época e de embaixadores ocidentais. Por esse motivo, segundo Segrillo, os primeiros grandes livros sobre o período não foram escritos por historiadores, que começaram a produzir de maneira embrionária na década de 1930 e, após a Segunda Guerra Mundial, passaram a explorar o tema exaustivamente.

Nesse período, duas correntes antagônicas surgiram: os chamados cold warriors (guerreiros da Guerra Fria) e os revisionistas da década de 1960. A literatura cold warrior, como implica o nome, é profundamente impactada pelo contexto bipolarizado em que se inseriu, sendo extremamente crítica ao regime soviético, tratado como totalitário. Os revisionistas, segundo o professor Segrillo, também influenciados pelo furor rebelde dos anos 1960, especialmente após as revoltas de 1968, buscaram estabelecer uma crítica àquele paradigma.
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Cartaz do evento História e Historiografia da Revolução Russa, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc
Cartaz do evento História e Historiografia da Revolução Russa, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc – Foto: Reprodução

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Enxergando-o como uma leitura elitista, o que o professor chama de “história de cima”, que estuda a revolução apenas a partir do estudo das relações entre a elite czarista e a contra-elite revolucionária dos bolcheviques, os jovens historiadores trouxeram a “história de baixo”, procurando entender o papel do povo no processo revolucionário, deixado de lado pelos
cold warriors, o que deu origem à história social da Revolução Russa. “Esse embate entre cold warriors e revisionistas teve seu ápice na década de 1980, quando os autores da história social já haviam alcançado posição de prestígio acadêmico”, afirma Segrillo.

Enquanto isso, após a morte de Stálin e o fim do culto à sua personalidade propiciado por seu sucessor, Nikita Khrushchev, os historiadores da URSS voltaram a ter alguma liberdade para analisar e escrever sobre a revolução, ainda que com as ressalvas impostas pelo partido. De acordo com o professor, “surgiram nesse período visões menos romantizadas do papel dos bolcheviques na Revolução Russa, dando a entender que eles por muitas vezes ‘pegaram carona’ nas tensões de classe e na insatisfação popular para chegar ao poder, além de embates entre as chamadas Escola de Leningrado (hoje São Petersburgo, mais aberta a leituras diferentes da história) e a Escola de Moscou (centro da União Soviética, mais tradicionalista)”.

Então veio a Perestroika e “virou tudo de cabeça para baixo”, nas palavras do professor. A abertura para o capitalismo, que ocasionou o fim da União Soviética e a queda do Muro de Berlim, trouxe consigo também novas correntes historiográficas no Ocidente e na agora Rússia.

Por um lado, houve uma reafirmação triunfalista por parte dos cold warriors, que enxergaram ali a prova de que a URSS era um gigante totalitário de pedra e barro e que bastou abrir um pouquinho para que tudo fosse abaixo. Os revisionistas, por sua vez, sofreram um baque, mas se recusaram a aceitar a visão elitista dos cold warriors, em vez disso incorporando à sua história social a história política, criando novas interpretações da revolução por meio da união entre a ‘história de cima’ e a ‘história de baixo’.

Segrillo, professor da FFLCH, viu in loco o fim da URSS durante seu mestrado em Moscou - Foto: Cecília Bastos/USP Imagens
Segrillo, professor da FFLCH, viu in loco o fim da URSS durante seu mestrado em Moscou – Foto: Cecília Bastos/USP Imagens

Além disso, com a abertura dos arquivos do regime, eclodiram estudos sobre um novo objeto: o aspecto regional. “Durante a Guerra Fria, os arquivos de Moscou já eram de difícil acesso aos historiadores, e no interior era ainda mais complicado. O fim do conflito proporcionou uma quantidade enorme de material para pesquisa, tanto dos historiadores ocidentais como dos russos.” Outra corrente historiográfica atual, embora ainda embrionária, segundo Segrillo, é a da linguística, formada por pesquisadores pós-modernos que estudam a linguagem, a comunicação e os símbolos da revolução.

“Na Rússia houve ainda mais novidades, além dos estudos regionais e linguísticos que há também no Ocidente. Os pesquisadores de lá resgataram conceitos como o totalitarismo e a teoria da modernização weberiana, coisas que para a academia ocidental já estavam em desuso, mas em território soviético eram antes proibidas, então é um movimento interessante nesse aspecto”, completa o professor.

Tão variada quanto a historiografia da Revolução Russa é a questão das nacionalidades no território da atual Rússia e das antigas repúblicas soviéticas. “Quando voltei ao Brasil, na década de 1990, notei uma profunda dificuldade das pessoas em entender que a diferença dos povos de lá não pode ser resumida a etnia. São nações diferentes, a Rússia é um estado multinacional. É importante compreender isso para melhor compreender questões além da própria Revolução de 1917.”

Esse assunto será também abordado pelo professor Segrillo em sua palestra, hoje, das 19h30 às 21h30, no CPF do Sesc. O endereço é Rua Dr. Plínio Barreto, 285, 4º andar, Bela Vista, São Paulo. Inscrições podem ser feitas no próprio CPF ou em outras unidades do Sesc em São Paulo. Os valores das entradas são de R$ 9,00 para trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo matriculados no Sesc; R$ 15,00 para idosos, pessoas com deficiência, professores e estudantes da rede pública com comprovante; e R$ 30,00 (inteira).

Mais informações: http://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/ciclo-1917-o-ano-que-abalou-o-mundo-100-anos-da-revolucao-russa-historia-e-historiografia-da-revolucao-russa


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