Coronavírus viraliza educação on-line

Por Débora Duran, mestre e doutora pela Faculdade de Educação da USP e assessora pedagógica no Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx/DETMil)

 18/03/2020 - Publicado há 4 anos     Atualizado: 11/04/2020 as 11:53
Débora Duran – Foto: Arquivo pessoal
A pandemia desencadeada pela disseminação do coronavírus coloca-nos diante de muitas questões complexas. A primeira e mais óbvia diz respeito à saúde, à vida e, no limite, à nossa própria finitude diante daquilo que não podemos prever e nem tampouco controlar. A segunda, por sua vez, refere-se à comunicação no contexto da cibercultura e nos remete às complicações decorrentes da subinformação, superinformação e desinformação. A terceira, relacionada à defesa nacional, aponta para a conexão entre geopolítica e guerra cibernética, bem como para a digitalização progressiva do teatro de operações. Tal problemática pode até parecer assunto restrito aos militares, mas o fato é que existem ataques cotidianos de vírus constituídos por bits e algoritmos que podem colocar em risco atividades econômicas e socioculturais, bem como educacionais. A imunidade, em sentido amplo, transformou-se num desafio a ser prontamente enfrentado pela sociedade global.

Nesta breve reflexão, pretendemos discutir algumas relações entre coronavírus, educação on-line e defesa. A educação on-line, vale lembrar, não se limita à educação a distância, pois contempla o conjunto de processos de ensino e aprendizagem realizados no ciberespaço. Inclui, assim, o ensino híbrido ou blended learning, uma tendência que mescla atividades on-line e off-line com foco na personalização dos processos educativos. Propomos, então, algumas aproximações fundamentadas em cinco ideias cujas letras iniciais compõem a palavra vírus: viabilidade, interatividade, responsabilidade, ubiquidade e simplicidade.

Viabilidade

Há décadas que pesquisadores anunciam o aprofundamento do processo de digitalização decorrente da revolução informacional e seus desdobramentos na educação. A denominada fratura digital, como bem se sabe, tende a se transformar em fratura cognitiva, já que cada vez mais o acesso aos conteúdos digitais e às redes colaborativas impõe-se como condição para a aprendizagem. Mesmo que não se pretenda advogar a favor do determinismo tecnológico, é forçoso reconhecer que a exclusão digital pode comprometer o desenvolvimento cognitivo dos nativos digitais e, em certo sentido, o próprio desenvolvimento social e econômico do país. Prejudicados estão aqueles que não têm condição de acesso para aprender, mas também aqueles que têm acesso, mas não estão em condições ótimas de aprendizagem por falta de orientação pedagógica coerente e consistente.

Pelos mais diversos motivos, boa parte dos professores não sabe (ou não quer saber) como aproveitar as potencialidades tecnológicas para ampliar suas competências pedagógicas. No contexto da pandemia, fica evidente que a educação on-line ainda está longe de ser uma realidade possível para os alunos mais pobres, do mesmo modo que não representa uma realidade ideal para os mais favorecidos. O letramento digital continua a ser, portanto, um desafio político, social e pedagógico.

Interatividade

No início do boom dos computadores pessoais, alguns especialistas destacaram a importância da apropriação das denominadas TDIC (tecnologias digitais da informação e comunicação) como instrumentos ou ferramentas de ensino. Posteriormente, com a popularização dos celulares e do acesso à internet, acadêmicos e demais profissionais da educação compreenderam, finalmente, que a denominada sociedade da informação trazia em sua esteira uma nova cultura de aprendizagem. Há décadas que a memorização e a transmissão da informação estão a cargo do hardware e do software, enquanto ao peopleware são dirigidos os desafios da construção do conhecimento e do pensamento crítico e criativo.

As experiências cotidianas no mundo hiperconectado colocam em xeque o modelo clássico de comunicação ainda vigente em algumas instituições de ensino, o bem conhecido “fala que eu te escuto”. Com a emergência das comunidades virtuais, redes sociais e aplicativos, a interatividade deixou de ser a exceção para transformar-se na regra que orienta os processos de aprendizagem colaborativa on-line. No caso específico do coronavírus, notamos que as redes interativas se unem de forma sinérgica para esclarecer, orientar e minimizar os efeitos de uma ameaça assustadora. Contraditoriamente, muitas iniciativas de educação on-line se limitam à mera disponibilização de conteúdos nos mesmos moldes da sala de aula tradicional, isto é, escolas e universidades ainda não superaram o paradigma da transmissão.

Responsabilidade

Confundir revolução tecnológica com revolução pedagógica é um equívoco, pois no cenário educacional há muitos casos de mera transposição de um modelo pedagógico conservador para um ambiente virtual inovador. Da aula expositiva à videoaula, a multimídia e a hipermídia não podem ser consideradas isoladamente como sinônimo de transformação metodológica, pois não raro representam apenas mudança tecnológica. Sendo assim, os professores precisam estar mais atentos à dinâmica de aprendizagem, ou seja, dispostos a explorar os recursos virtuais para a realização de atividades interativas e desafiadoras que sejam capazes de mobilizar os alunos para os estudos.

A responsabilidade, no entanto, deve ser compreendida como corresponsabilidade. O ideário do neotecnicismo insiste em colocar nos professores a culpa pelos problemas da educação, bem como nos recursos tecnológicos e nas metodologias de ensino as esperanças de solução. A esse respeito, é fundamental esclarecer que o trabalho docente está inserido em realidades complexas atravessadas por fatores políticos, econômicos, socioculturais e institucionais que condicionam sua realização. Na contramão do senso comum, é preciso entender que a responsabilidade pela inovação na educação é dos docentes, mas também dos gestores, líderes institucionais e, inclusive, governantes. Em última instância, não se pode omitir o papel fundamental das famílias e dos próprios alunos nesse processo, já que inovar exige assumir riscos e responsabilidades pelo próprio aprendizado, o que requer uma postura proativa.

Ubiquidade

Da educação formal à aprendizagem ubíqua (onipresente, distribuída por toda parte, on demand), os professores deixaram de ser os únicos detentores da informação e, por esse motivo, seu papel está sendo ressignificado e reinventado. De transmissores da informação passaram a ser mediadores, coautores e curadores do conhecimento. Ainda que a transmissão faça parte do trabalho docente, na era digital os profissionais da educação são impelidos a se conectarem à inteligência coletiva, juntamente com seus alunos, nas redes sociais e comunidades virtuais de aprendizagem. Nesse sentido, mais do que se preocuparem em repassar o que sabem, devem se ocupar de aprender para elaborar conteúdos em parceria e, além disso, reconhecer que já existem muitos (i)materiais didáticos de excelente qualidade disponíveis on-line que podem ser aproveitados em aulas presenciais e virtuais. Portanto, a curadoria é fundamental para ampliar repertório, ganhar tempo e estimular a lógica da complexidade e da interdisciplinaridade.

Hoje, com ou sem vinculação institucional ou o apoio de professores, é possível construir trilhas de aprendizagem personalizadas e realizar jornadas cognitivas autônomas. Com a ubiquidade, sem barreiras ou fronteiras espaço-temporais, a informação está disponível a um clique ou a um toque, fenômeno que revela a necessidade de se repensar o sentido da escolarização. A falta de motivação, bem como os altos índices de evasão e indisciplina escolar, dentre outros problemas, revelam que assistir às aulas para realizar provas já não mais garante o envolvimento dos alunos nas rotinas de estudo. Curiosamente, a covid-19 provoca leitura, estudo, discussão e colaboração intensa com vistas à solução de problemas. Vê-se, no cenário do pânico generalizado, o que a sabedoria popular e os teóricos da psicologia da aprendizagem já haviam anunciado há muito tempo: “a água quente faz o sapo pular”, ou em termos mais técnicos, que necessidade gera motivação e que significação e contextualização são fundamentais para garantir a aprendizagem.

Simplicidade

Simplicidade, a rigor, não é sinônimo de simplificação. Perguntas difíceis não se rendem a respostas fáceis e, por esse motivo, reduzir a complexidade do coronavírus e de suas consequências educacionais a soluções ingênuas e imediatistas é algo temerário, para não dizer inadmissível. Feita a devida advertência, no que diz respeito específico à educação on-line, é importante deixar claro que sofisticação tecnológica não é garantia de efetividade pedagógica. Mas o que isso quer dizer, afinal? Em primeiro lugar, que recursos financeiros são necessários, mas que não se trata simplesmente de adquirir (i)materiais didáticos, equipamentos, programas e serviços de empresas desejosas de obter lucros com a educação, a qualquer custo. Em segundo, que ideias simples, mas criativas, podem surpreender. Juntos, comunidades, pesquisadores, profissionais da educação e alunos podem encontrar alternativas originais, e até mesmo inéditas, para enfrentar os desafios educacionais da atualidade.

Mais do que aprender sobre determinados conteúdos, é preciso aprender a aprender, aprender a ensinar, ensinar a aprender e ensinar a ensinar. A novidade, no entanto, é que podem e devem ensinar e aprender tanto professores como alunos, de modo que alunos podem apoiar seus professores no que diz respeito à exploração das tecnologias digitais para fins didáticos e, inclusive, como auxiliares de ensino, pois não é segredo que se aprende mais facilmente com colegas. Difícil? Nem tanto! Quando a lógica da transmissão da informação é superada pela proposta de construção do conhecimento, processos são considerados tão importantes como produtos. Nesse sentido, reconhecer que os alunos podem, além de consumir conteúdos, construí-los e compartilhá-los on-line é algo fundamental quando se pensa em inovação pedagógica. No que diz respeito à utilização de aplicativos e softwares de autoria e edição, para os nativos digitais isso não é problema, mas faz parte da solução.

Nos últimos dias, estamos aprendendo e ensinando sobre coronavírus, uns com os outros, de forma dialógica. Da teoria à prática e vice-versa, construímos e atualizamos, diariamente, uma real experiência de aprendizagem com base em textos, imagens, animações, música, infográficos, vídeos e um sem-número de aplicativos. Estamos imersos no ciberespaço e às voltas com a linguagem digital que propicia a multimodalidade (comunicação que envolve diversos meios e formas), hipertextualidade, interdisciplinaridade e interatividade. Com a necessidade de evitar o alastramento da pandemia, os encontros presenciais têm sido evitados, inclusive nas instituições de ensino formal, o que nos obriga a reconhecer a educação on-line como alternativa para enfrentar o problema. Inevitavelmente, tal situação nos obriga a refletir sobre o caráter problemático da educação nacional, uma vez que não parece razoável supor que apenas uma situação de calamidade pública seja capaz de trazer à tona questionamentos óbvios vocalizados por pesquisadores, especialistas, profissionais da educação, alunos e pais. A educação on-line não pode ser considerada como tendência para fins de substituição ou complementação da educação formal, em casos de virulência; mas como realidade instaurada enquanto imposição da época atual, em caráter de emergência.

No momento, precisamos nos defender do coronavírus e envidar esforços para proteger a saúde e a vida dos brasileiros e brasileiras. Contudo, não podemos nos esquecer de que existem outros vírus naturais e artificiais, e de que em tempos de cibercultura dependemos de uma infraestrutura digital robusta para garantir o funcionamento das atividades relacionadas ao trabalho, à socialização, ao entretenimento e à educação, dentre outras. Existem diversas ameaças invisíveis que podem colocar em risco a estabilidade do país, destacando-se a vulnerabilidade da educação, que, por ser estratégica, também diz respeito à defesa nacional. Para garantir um certo grau de imunidade no contexto turbulento da globalização, são necessárias novas tecnologias, mas também novas pedagogias. A pesquisa, entendida como princípio científico, educativo e laboral, é fundamental. Ações propositivas precisam contagiar, viralizar; pois se navegar é preciso, inovar é decisivo e defender é imperativo.

 


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