Forçados ao batismo, descendentes de muçulmanos lutaram para preservar cultura

Cronistas de guerra relatam conflitos que levaram mouriscos a serem expulsos de sua própria terra para outros reinos hispânicos

 18/03/2019 - Publicado há 5 anos     Atualizado: 21/03/2019 as 19:04
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As pragmáticas de reis católicos impunham aos mouriscos o batismo cristão e a proibição de cultos islâmicos. Também não se podia falar, ler e escrever em árabe e os livros tinham que ser entregues aos agentes da coroa real – Desenho de Christoph Weiditz (1529)

Crônicas de guerra que tratam da revolta dos mouriscos contra as imposições da monarquia católica na Espanha, no século 16, permitiram conhecer a cultura deste povo de origem de muçulmana que viveu na Península Ibérica por séculos. O levante resultou na Guerra de Granada que se estendeu por longos três anos e terminou na deportação dos mouriscos para outros reinos hispânicos. Os relatos constam das crônicas de Diego Hurtado de Mendoza (diplomata da nobreza local) e de Luis del Marmol Carvajal (soldado), que integram o conjunto de fontes analisados pela historiadora Ximena León Contrera em sua pesquisa de doutorado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

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Mendoza era de uma família nobre de Granada e sua escrita sobre a guerra foi feita em linguagem mais formal e erudita. Já Carvajal atuou diretamente no combate de guerra e por pertencer a um extrato social mais baixo, desenvolveu uma narrativa mais popular e menos rebuscada. Ambos os depoimentos trouxeram informações sobre o dia a dia dos mouriscos em Granada e as estratégias que utilizaram para preservar sua identidade cultural e religiosa, relata Ximena. Boa parte da pesquisa se baseou nas edições impressas nos anos de 1627 e 1776, de Mendoza, e de 1600, de Carvajal. Os principais documentos analisados foram a História del Rebelion y Castigo de os Moriscos del Reyno de Granada, de Luis del Marmol Carvajal e Guerra de Granada, que hizo El Rey D. Felipe II. Contra los moriscos de aquel reino, sus rebeldes, de Diego Hurtado de Mendoza, que se encontram disponíveis para consulta on-line na Biblioteca Nacional de España.

Os mouriscos (palavra que deriva de mouro) eram os descendentes da população muçulmana que foram forçados ao batismo cristão pelas pragmáticas (ordens) de reis católicos depois da rendição do último rei muçulmano em Granada (Espanha), em 1492.  A partir deste período e ao longo do século XVI, as perseguições contra os recém-convertidos se tornaram cada vez mais intensas, relata o estudo.

Em Granada, onde aconteceu o levante narrado pelos cronistas, os muçulmanos eram um grupo demograficamente forte e se destacaram pelo manejo da terra e o cultivo de variedades apreciadas na culinária mourisca: plantavam amêndoas, figos, azeitonas, uvas-passas, hortaliças, laranjas, limões e em especial a amoreira, de onde se criava o bicho da seda. Nesta região, ainda que submetidos à cultura e aos costumes católicos, alguns grupos viviam sua fé de forma clandestina e por isso eram considerados um grupo à parte. Outros dissimulavam e fingiam abraçar a fé cristã, mas em sua intimidade, mantinham costumes e rituais islâmicos, relata a pesquisadora.

Não se podia falar, ler e escrever em árabe

Conforme os mouriscos persistiam em manter suas práticas culturais e religiosas, a pressão das autoridades se tornou cada vez mais intensa. As pragmáticas publicadas pela monarquia interferiram, inclusive, no dia a dia das pessoas: elas foram proibidas de falar, ler e escrever em árabe e os livros nesse idioma tiveram que ser entregues aos agentes da coroa. As cerimônias sociais (batismos, casamentos e funerais) deveriam seguir liturgias das festas cristãs, sem músicas e canções mouriscas, e as mulheres foram impedidas de usar vestimentas tradicionais como as almalafas (manto que cobre o corpo dos ombros aos pés), as marlotas (capuz) e a hena, usada em tintas de cabelo (e mesmo nas barbas dos homens), adornos e tatuagens.

Ainda sobre as mulheres, as fontes analisadas mostram a importância delas nas comunidades mouriscas: trabalhavam no campo e nas fábricas de sabão e de pólvora e serviram também como mão de obra na construção em transporte de cargas. Na sericultura, colhiam folhas da amoreira para os bichos da seda e faziam os delicados filamentos dos ninhos para elaboração da seda.

Trajes de mulheres mouriscas – Desenho de Christoph Weiditz (1529)

Além das pressões do dia a dia, alguns prognósticos proféticos (profecias) que circulavam entre os mouriscos incitavam o enfrentamento contra os governantes e também foram apontados como motivação do levante: as mensagens faziam alusão de que o sofrimento presente compensaria e levaria a um resgate de um modo de vida do período islâmico da Península Ibérica.

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Mesmo depois de muita resistência, no final, a guerra foi inevitável, conta a pesquisadora. Na região das Alpujarras (Granada), onde a revolta efetivamente começou, as crônicas informam sobre várias movimentações de mouriscos e quadrilhas de salteadores armados que precipitaram o levante contra a coroa. As narrativas indicaram que se tratou de uma revolta sangrenta e ainda que os protagonistas, sem muitos recursos e com pouco contingente, tentassem resistir, terminaram rendidos e castigados. Como consequência do conflito, milhares de mortos e cerca de 84 mil pessoas deportadas de sua própria terra para outros reinos hispânicos, muitas inclusive escravizadas.

A pesquisa parte das crônicas da guerra de Granada, mas trata também dos períodos anterior e posterior a esses eventos e que desembocaram na expulsão definitiva dos mouros da Espanha, incluindo os debates religiosos e relacionados com a “razão de estado” que permearam a questão mourisca.

A pesquisa O desterro dos naturais da terra. Escrita, cotidiano, profecias e revolta na expulsão dos mouriscos de Espanha (1492-1614) teve a orientação da professora livre-docente Ana Paula Torres Megiani, do Departamento de História da FFLCH da USP.

Mais informações: ximenalc@gmail.com, com Ximena Isabel León Contrera.

 


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