Para Jacó Guinsburg: valeu, querido professor

Abílio Tavares conquistou o Prêmio Tese Destaque USP 2013, sob orientação de Jacó Guinsburg, com quem também organizou sete livros

 25/10/2018 - Publicado há 6 anos

Abílio Tavares – Foto: Reprodução / ECA

Faleceu, no último domingo, o professor, editor, autor, crítico e ensaísta Jacó Guinsburg. A grande presença ontem, 25 de outubro, em seu enterro, de familiares, amigos, parceiros, alunos e orientandos, alguns vindos de longe; a comoção e a profunda atmosfera de afeto, carinho e gratidão que emanava naquele encontro de várias gerações, são testemunhas de sua enorme importância para tantas e tão diversas pessoas.

Sua importância para a universidade e para a cultura de nosso país foi amplamente descrita e saudada pelos grandes veículos de imprensa, nestes dois últimos dias. Sobretudo pela realização de sua maior obra: a Editora Perspectiva, trabalho de uma vida, ao lado da companheira também de uma vida: Gita Guinsburg.

Ainda tocado pela emoção e pelas imagens desses últimos dias, escolho então evocar as memórias de um jovem aluno, diante de seu professor na graduação, depois orientador na pós, amigo pessoal e mestre na vida, ao longo de mais de trinta anos.

Cursei a graduação no Setor de Teatro (atual Depto. de Artes Cênicas) da Escola de Comunicações e Artes da USP, entre os anos de 1982 e 1985. Jacó ministrava as disciplinas de Estética e Teoria do Teatro no primeiro e segundo semestres do último ano da graduação. Já no primeiro dia de aula, os calouros eram iniciados pelos veteranos na fama do professor, cujo contato, que iria se estabelecer somente no fim da trajetória, deveria servir de alento e estímulo para todas as dificuldades do caminho até lá. Caso sobrevivêssemos à travessia, seríamos recompensados no último ano pelo contato com o grande mestre. Prêmio ou castigo, teste final para nossas vocações artísticas e acadêmicas, Jacó era a verdadeira “prova de fogo” da escola.

Para nossa surpresa, a aula mais teórica de todo o curso revelou-se também a mais prática. Estávamos já no último ano e nunca havíamos aprendido tanto sobre direção, interpretação, dramaturgia. Nunca havíamos aprendido tanto sobre teatro. As aulas eram intensas, profundas, perturbadoras, provocantes. Saíamos exaustos, suplicávamos por uma pausa para o café. Jacó falava, seu raciocínio agudo e rápido ia desenhando uma arquitetura invisível no espaço. Às vezes, alguns, quando não todos, perdiam o fio da meada. Jacó, sempre muito atento, profundo observador, resgatava-nos, generoso, para seguir com ele na viagem de seu pensamento. Assim ia, aos trancos e sobressaltos, nossa incrível experiência de, com ele: aprender.

Como nas aulas mais exaustivas de trabalho corporal, havia uma energia física muito intensa sem que precisássemos sequer mexer um dedo. A aventura do pensamento ali não era abstrata. Era física, concreta. Era trabalho e era esforço. Tinha tônus. Uma verdadeira “malhação”. Assim como nos treinamentos físicos mais intensos onde, por meio da exaustão, podemos atingir outros estados de percepção, chegava uma hora em que toda aquela ginástica mental parecia nos levar para um outro plano psíquico.

Mesmo com todos os alunos sentados durante horas em torno de uma grande mesa retangular, as aulas de Jacó tinham espetacularidade. Espetacular no sentido daquilo a que se assiste e que nos causa admiração, impressiona, fascina e nos faz compartilhar algo. Não que ele quisesse fazer graça ou ficar se exibindo para nós, nada disso, muito pelo contrário. Começava, devagarzinho, a falar sobre um assunto, tateando, reticente, patinando um pouco, pigarreando, aquecendo-se aos poucos. Ia esquentando, esquentando e de repente, pronto: lá estava ele, surfando livre no mundo das ideias, dos conceitos, tirando nosso fôlego com suas manobras inesperadas e às vezes radicais.

Sua habilidade, sua destreza, seu poder de encantamento com as palavras e com as ideias fizeram com que ele recebesse, entre nós, um apelido que somente muitos anos depois tivemos coragem de contar a ele. Na época, fazia sucesso um jogador engraçado, mas muito habilidoso: “o rei do futebol em Alagoas”. Um desses jogadores que dava prazer  ver, porque, a qualquer momento, poderia surpreender e encantar-nos com uma jogada especial. Seu nome era Jacozinho. Uma amiga, ao estabelecer semelhanças entre as habilidades técnicas do jogador e as habilidades intelectuais de nosso professor, referiu-se a ele, usando o mesmo diminutivo atribuído ao jogador. O nome pegou. Assim como o futebol alagoano, nós também tínhamos, na Universidade, o nosso craque.

Havia nisso um carinho chistoso, aliás, muito condizente com a personalidade de nosso professor, apesar de sua tão conhecida seriedade e rigor. Era uma forma de nos apropriarmos daquele exímio jogador que às vezes enlouquecia-nos com seus dribles e malabarismos estéticos, poéticos, filosóficos. Era uma forma secreta de torná-lo mais próximo, mais amigo, de subvertê-lo e surpreendê-lo em sua aparente formalidade. Era nossa maneira de apreendê-lo humano, esse humano tão singular que era Jacó Guinsburg, ou simplesmente (e, secretamente, muito cá entre nós), o nosso “Grande Jacozinho”.

Depois, vieram para mim e para tantos amigos, as longas jornadas da pós-graduação sob sua orientação. No dia da defesa de um orientando, Jacó se transformava. Nas suas brincadeiras, provocações, dessacralizações do rito acadêmico e, ao mesmo tempo, no rigor com que geralmente apresentava e concluía os trabalhos, transbordava a alegria de um vigor sempre e surpreendentemente renovado. Concluía-se ali mais uma construção. E foram muitas as construções.  Mais de cinquenta anos na Universidade. Uma vida inteira dedicada aos livros e à cultura.

Valeu, e como valeu, querido professor.

 


 


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