Série de conteúdos produzidos pelo projeto Ciclo22, que remete à reflexão da USP sobre quatro grandes marcos (1822, 1922, 2022 e 2122): o bicentenário da Independência do Brasil, o centenário da Semana de Arte Moderna, o tempo presente e os desafios para os próximos 100 anos

Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo - Foto: Marcos Santos/USP Imagens

Bibliotecas são importantes espaços de estudo para estudantes de baixa renda

Marina Macambyra, bibliotecária da Escola de Comunicações e Artes da USP, fala sobre o impacto da digitalização e a importância das “casas de livros” para estudantes de dentro e fora da Universidade

 10/02/2023 - Publicado há 2 anos

Crisley Santana

Muito além do armazenamento de livros, as bibliotecas representam um importante trabalho na conservação de documentos. Pesquisas, filmes e até obras de arte são exemplos dos materiais que podem fazer parte dos acervos que compõem uma biblioteca, também usadas como espaço de estudo.

Em entrevista ao projeto Ciclo22, Marina Macambyra, que atua na biblioteca da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, em São Paulo, falou sobre a importância das bibliotecas, o impacto da digitalização de conteúdos e porque o trabalho de um bibliotecário é fundamental. Marina fez o curso de biblioteconomia na ECA na turma de 1979 e trabalha em bibliotecas da USP desde 1981. Confira a entrevista abaixo.

Quais documentos uma biblioteca preserva além dos livros?

Marina Macambyra, bibliotecária da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP - Foto: Samanta Lessa

Marina Macambyra, bibliotecária da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP - Foto: Samanta Lessa

Literalmente qualquer um, além do que as pessoas normalmente conhecem, que são os livros e as revistas impressos e eletrônicos. As bibliotecas têm acervo de filmes, de música, de partitura, até acervo de obras de arte. A biblioteca da ECA tem um pequeno acervo de obras originais que são produzidas pelos artistas que fazem teses e dissertações. Tem fotografias também. Pode ter de tudo. A biblioteca da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo], por exemplo, têm projetos arquitetônicos.

Normalmente as bibliotecas mantém e constroem acervos que sejam de interesse para o seu público ou que sejam produzidos para o seu público. As bibliotecas universitárias tem muito disso: nós guardamos o que a comunidade que a gente atende produz. É preciso estar aberto a aceitar de tudo.

Então há essa diferenciação: uma biblioteca universitária não vai aceitar ou ter o mesmo acervo que uma biblioteca de outro espaço, por exemplo.

Em parte sim. São acervos diferentes. A biblioteca universitária é bem mais especializada, tem que atender ao seu público. A biblioteca pública normalmente tem um acervo mais geral. O que não quer dizer que não possa ter os mesmos livros que temos aqui, por exemplo. Mas em geral há uma diferença, sim. Tanto que às vezes recebemos um público que não é o da universidade em busca de algum material e a gente não tem. Ou tem, mas em inglês, francês, alemão, e às vezes não interessa àquela pessoa que não conhece outras línguas. Isso é uma diferença.

Em termos de comparação, o que você pode dizer sobre o período em que iniciou o trabalho como bibliotecária, por exemplo, e o que você percebe agora, tanto em relação aos documentos que uma biblioteca preserva, como com relação à frequência dos estudantes no espaço?

Como comecei a trabalhar faz muito tempo, eu vi tudo acontecer. Eu vi, por exemplo, a informatização. Começamos primeiro a informatizar os catálogos, a ter catálogos automatizados, base de dados, ao invés dos antigos fichários de papel, até a chegada da internet e o advento dos acervos e coleções digitais. Eu vi isso tudo acontecer.

Mudanças aconteceram. A primeira mudança que a gente observou, e eu estou falando de uma percepção minha e de muitos colegas da USP, é que antes recebíamos muitos estudantes, por exemplo, de escolas de ensino fundamental para fazer pesquisa. Isso porque as bibliotecas escolares nunca foram muito boas. Muitas escolas não tinham bibliotecas ou tinham bibliotecas muito simples. As bibliotecas públicas nem sempre o aluno sabia que existiam, isso é uma coisa muito séria. Eu atendia, antigamente, crianças e adolescentes que vinham de longe em busca de um material que a gente não tinha ou não podia oferecer, enquanto tinha uma biblioteca pública ali perto da escola dele, mas nem o aluno e nem o professor sabiam da existência dessa biblioteca.

A gente recebia bastante criança querendo fazer xerox de enciclopédia. A gente brincava que algumas bibliotecas já deixavam o material separado porque sabiam que esse público ia chegar. Esse público nós não temos mais porque as pessoas, hoje, têm acesso à internet, têm Wikipédia. Têm um monte de outras fontes que resolvem perfeitamente — ou não, depende — buscas mais simples. Isso é uma das mudanças. 

Outra coisa que percebemos é que nem sempre é simples o uso da biblioteca. Nós recebemos pessoas jovens, e até gente não tão jovem fazendo mestrado, por exemplo, que não está acostumado a usar a biblioteca. Isso sempre aconteceu e é mais ou menos a mesma proporção. As coisas mudaram, mas não muito. 

Há pessoas que são capazes de entender rapidamente uma busca numa base de dados internacional, mas tem gente que tem dificuldade de usar nosso catálogo e até dificuldade de usar o Google, na verdade. O percentual das pessoas que têm dificuldades em relação às pessoas que não tem nenhuma, daquelas médias, que sabem mais ou menos e nos procuram para alguma orientação é mais ou menos a mesma.

Eu lembro que eu brincava com as pessoas com quem eu tinha intimidade, que tinham dificuldade de consultar o fichário. Elas diziam:
 — Ah, mas por que vocês não informatizam?
Eu respondia:
— Porque quando informatizar vai ser a mesma coisa. Se você não sabe procurar uma ficha em ordem analfabética, você também vai ter problemas para acessar uma fonte de informação mais sofisticada (risos).

Uma diferença muito fundamental é que antigamente chegava uma pessoa que tinha dificuldade, por exemplo, de fazer uma busca por assunto no catálogo:
— Eu quero um livro sobre arte contemporânea no Estado de São Paulo. 
A pessoa chegava, olhava o fichário: 
— E agora? O que que eu faço? 

E então ia perguntar para o funcionário, para o bibliotecário ou para a pessoa que atendia e nós orientávamos. Agora a pessoa, muitas vezes, entra na biblioteca e se vira. Consegue acessar a internet, o catálogo. Consegue fazer uma busca e fica satisfeita. Mas nem sempre ela realmente encontrou o que precisava. 

É ilusório pensar que tudo é muito fácil porque está on-line e qualquer pessoa, principalmente os mais jovens, os mais espertos, conseguem acessar. Então, às vezes nós ficamos numa certa aflição quando uma pessoa entra na biblioteca, vai até o computador, faz algumas tentativas e vai embora. Eu sempre que posso e, claro, evitando constrangimentos, procuro perguntar se a pessoa precisa de ajuda e muitas vezes precisa. Ela só não fala porque tem essa noção de que ‘eu tenho que saber porque todo mundo sabe‘. Essa é uma diferença muito grande entre antigamente e agora.

Há também, por exemplo, professores que são grandes especialistas em suas áreas de pesquisa, mas podem ter dificuldade com a tecnologia, que muda todo dia. Muda muito rápido. Ele pode ter dificuldade, mas não se sente bem em pedir ajuda. O mesmo acontece com os estudantes mais jovens, que pensam:

— Eu não sei, mas também não vou perguntar para essa velha —. É muito difícil lidarmos com essas questões.

Tem essa ilusão de que a internet vai te proporcionar todas as ferramentas necessárias, mas se você não souber manejar as ferramentas…

Sim! Isso de que tudo que está on-line, então é fácil de encontrar não é necessariamente verdade. Tanto que algumas pessoas ficam completamente ‘absurdadas‘ quando descobrem que não tem. 

— Como assim não está on-line?

— Não, não está —. Ou até acha no catálogo os documentos de interesse para pesquisa, mas descobre que não é possível acessar.  Há pessoas que não entendem que em um catálogo nem tudo tem um link para clicar e abrir o conteúdo. Não entendem que não dá para baixar. Isso acontece muito na área das artes e humanas, mais do que em outras áreas, porque temos menos material disponível online. isso às vezes é uma surpresa: 

— Como não tem? Como assim eu vou ter que sair de São Paulo e ir até Minas Gerais fazer uma pesquisa em um arquivo para minha tese?

— É… Vai. O mundo, por enquanto, ainda está assim. No meio do caminho.

De que maneira você acredita que a digitalização dos livros vai alterar o ambiente das bibliotecas, além dos aspectos que você já comentou? Você acredita que teremos cada vez menos livros físicos, por exemplo?

Eu suponho, pelo o que estamos vendo, que aos poucos teremos cada vez mais conteúdo disponível na internet. Não sei dizer se o livro físico vai acabar. Eu acho que não porque, convenhamos, livro físico é uma versão muito boa. Difícil melhorar isso, tanto que o livro digital é uma cópia do físico. Não mudou muito em termos de linguagem. Quando você acessa pela internet, geralmente, é um PDF horroroso. Então acredito que não vai acabar, mas teremos cada vez mais conteúdos disponíveis na internet. 

Nesse momento, vivemos um problema muito sério, principalmente nas bibliotecas de humanas e na nossa, de comunicações, no qual livros importantes para os cursos, livros básicos, estão esgotados nas editoras. Não tem, acabou. Às vezes, as bibliotecas têm um exemplar, mas não está disponível em e-book. Ou se está, nós não conseguimos simplesmente comprar e deixar disponível para todos na USP. Não é assim que funciona. Estamos enfrentando essa carência e também enfrentando o espanto das pessoas ao descobrir: 

— Como não tem? Eu compro na Amazon por R$ 11 e não tem na biblioteca? —. Não tem. É diferente o modo de aquisição de compra dos materiais.

Isso tende, eu suponho, a se resolver. A tecnologia vai mudando e o tipo de demanda das pessoas vai mudando. Convivemos tanto com pessoas perfeitamente integradas ao ambiente de recursos eletrônicos quanto com outras que rejeitam. Mesmo de jovens, eu ouço:

— Não aguento mais ler em PDF. Eu quero impresso —. É uma realidade, principalmente no pós-pandemia. 

Você também vai perguntar se eu acho que as bibliotecas vão acabar? (risos).

Eu imagino que não vão. 

Eu também acho que não vão, mas há uma preocupação. Tem muitos colegas que falam ser besteira e eu não acho tão besteira assim. O problema não é a tecnologia porque as bibliotecas, mais ou menos, conseguem acompanhar as mudanças tecnológicas. Não tanto quanto uma livraria, por exemplo, porque é tudo muito caro, muito difícil. Mas as bibliotecas convivem com isso há muitos anos, principalmente nas universidades.

Tentando acompanhar, aprendemos a trabalhar, a organizar e orientar o uso, tanto de material físico quanto de recurso eletrônico de base de dados. Então isso não é problema. O problema, na minha opinião, é que as bibliotecas não fazem muito parte do cotidiano da cultura brasileira. Não são presença forte na vida de todos, como em outros países. 

Como te falei, tem gente que entra na USP e nunca tinha consultado uma biblioteca antes. Pelo menos não uma biblioteca boa, complexa. As pessoas desconhecem as bibliotecas públicas. Quem gosta de ler e tem dinheiro, compra o livro. Quem gosta de ler e não tem dinheiro, não compra, e às vezes não sabe que tem uma biblioteca bem razoável perto de si. Também há poucas bibliotecas. Elas não são tão presentes assim. 

Custa caro manter uma biblioteca, custa caro contratar bibliotecário. É muito fácil, por exemplo, para o poder público usar como argumento para fechar uma biblioteca que elas não são necessárias porque se encontra tudo on-line. Essa é minha grande preocupação.

É aquilo: tem coisas que não vão acabar, não vão ser substituídas pelo mundo digital. Mas é assustador pensar que muitas bibliotecas vão fechar e que o argumento vai ser esse. Eu já escutei, inclusive de gente que estudou, fez faculdade: 

— Você é bibliotecária? 
— Sou.
— Nossa, mas alguém ainda usa a biblioteca? (risos)
— Usa!

Então, o que que vai acontecer? As bibliotecas vão ser um equipamento só da elite intelectual? Deveria ser o contrário. As bibliotecas são importantes, sobretudo, para populações carentes, para quem não tem acesso à informação. Tanto com acervo quanto com acesso gratuito à internet e uso de espaço.

Nós vimos o quanto fez falta nesse período em que as bibliotecas tiveram que fechar. Muitas pessoas não tinham um lugar para estudar. Vem muita gente aqui, e em todas as bibliotecas da USP, usar o espaço porque não tem lugar para estudar em casa. Não tem um quarto só seu, um escritório, então vem estudar na biblioteca para se concentrar sem irmãozinhos e filhos atrapalhando. 

O que mais você pode acrescentar sobre o futuro das bibliotecas?

Eu espero que não acabem. Espero que continuem, que se modifiquem. A biblioteca não é um organismo isolado da sociedade. Elas estão na sociedade. As bibliotecas públicas dependem do poder público. Tudo o que acontece no mundo, no Brasil, vai se refletindo nas bibliotecas. Não dá para sonharmos com bibliotecas lindas, maravilhosas, perfeitas, com acervos e espaços, se não temos educação consistente e políticas públicas para construir e manter as bibliotecas. Tudo isso é parte de um contexto maior. 

Existe um artigo de um colega meu, chamado Ricardo Queiroz, que trabalha muitos anos com biblioteca pública. Ele fez uma bela análise da situação das políticas públicas em relação ao livro. É um profissional muito bom, que sabe muito bem do que está falando.