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LIVROS DA FUVEST
Série do Jornal da USP aborda as obras exigidas no exame de ingresso para a USP
Água Funda, de Ruth Guimarães, explora as tradições populares e os pilares da sociedade brasileira
Romance de estreia da autora reúne causos e lendas brasileiras vinculados ao contexto social e histórico dos anos 30 e 40; obra está na lista de livros obrigatórios para a Fuvest 2025
Arte sobre foto de Luciano Dinamarco / Fickr e Editora 34
“Esta história foi um gigantesco brinquedo de armar, cujas peças vieram, aos poucos, trazidas por gente contadeira de casos. Testemunhei o fim, entre 1928 e 1929.” É assim que a escritora Ruth Guimarães descreve Água Funda em uma das orelhas da 1ª edição do livro, de 1946. Relançado em 2018 pela Editora 34, o livro entrou na lista de leitura exigida para o vestibular da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular) 2025, que seleciona candidatos para os cursos da USP. A obra também integra o conjunto de livros obrigatórios da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Mato Grosso do Sul (UFMS), ambos de 2024.
Em 15 capítulos, o romance conta duas histórias principais interligadas entre si e situadas na fazenda Olhos d’Água, na região rural do Vale do Paraíba, em São Paulo. Nos primeiros quatro capítulos, narra-se a história, em meio aos anos finais da escravidão, de Sinhá Carolina, rica proprietária de uma fazenda escravocrata, cuja filha – Sinhazinha Gertrudes – apaixona-se pelo capataz e foge da propriedade. No restante dos capítulos, conta-se a história de Joca e Curiango, 50 anos depois. O fio condutor se estabelece a partir de Curiango, neta de Miro, irmã de Sinhá Carolina. Nesse segundo núcleo da narrativa, Joca gradativamente conquista o amor de Curiango, porém, depois de se casar, passa a ter o que o narrador chama de “ataques”. Devido aos surtos e à crescente obsessão por uma entidade lendária chamada de “Mãe de Ouro”, ele abandona a mulher e torna-se um andarilho da região.
Para além do que se narra, a forma como a autora constrói esse romance é fundamental para sua compreensão. Desde sua epígrafe, há o anúncio de que o relato que se segue é rodeado de mistério. “As referências a ‘qualquer tempo’ e ‘qualquer parte’ imprimem ao que se vai narrar uma espécie de atmosfera mítica, ao desprezarem lugar e data precisos”, comenta Marise Hansen, doutora e professora assistente de Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Esse misticismo permanece ao longo do romance, seja por meio das lendas e da cultura popular, seja pelos termos constantemente usados pelos narrador e personagens que evocam esse sentido, como “praga” e “mandinga”.

Estas coisas aconteceram em qualquer tempo e em qualquer parte. O certo é que aconteceram. E, como sempre se dá, ninguém apreendeu nada do seu misterioso sentido”

Capas de edições do livro Água Funda - Foto: Reprodução/Editoras
“Ruth Guimarães valoriza a cultura, a sabedoria e a linguagem caipira, no entanto, nem por isso transcreve documentalmente o falar das comunidades representadas, procedimento que quase sempre resulta em uma caricatura”, comenta Marise. Ruth escolhe utilizar em sua criação literária o folclore, entendido por ela enquanto “saber do povo”, sendo a linguagem de Água Funda uma demonstração disso. Como pontua o crítico e professor Antonio Candido, na segunda e terceira edição da obra, a autora elabora o livro a partir de uma linguagem que está entre o popular e o erudito e que articula diferentes identidades.
“A autora usa um vocabulário de origem indígena, africana, portuguesa, de frases feitas, aforismos e provérbios, que compõem a diversidade e a riqueza de uma língua a qual, por esses motivos, se pode chamar de brasileira”, salienta Marise. Nayara Capelo, mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH e professora da rede Ubuntu de cursinhos populares, complementa: “A obra pede ao leitor um olhar e uma escuta para um Brasil que é apagado, silenciado e assassinado. Ruth Guimarães traz à tona todas essas questões a partir dos eventos cotidianos narrados no livro”.
Marise explica que para a compreensão da obra é também importante analisar o narrador. “O foco narrativo é uma das soluções mais interessantes encontradas pela autora para contar a história, pois ele apresenta uma ambiguidade, pode-se mesmo dizer um ‘mistério’, que muito se articula com a atmosfera geral”, afirma. Por um lado, as histórias de Sinhá e Joca são contadas em 3ª pessoa, certas vezes, com uma postura onisciente; por outro, o narrador se revela um membro da comunidade e que testemunha os acontecimentos, com marcas do uso da 1ª pessoa e do diálogo com um interlocutor anônimo, a quem se dirige como “moço”. Em uma postura dúbia, o narrador é aquele que conta de uma perspectiva externa o que acontece nesse ambiente, mas também é aquele que narra como um sujeito integrante daquela comunidade, da cultura regional rural e caipira, para um público externo e que apenas ouve.

Marise Hansen, professora assistente da FFLCH USP - Foto: Linkedin
Água Funda, de Ruth Guimarães, é um dos nove livros exigidos no Vestibular 2025. Para ajudar os estudantes, o Jornal da USP traz, neste vídeo, as explicações da professora Marise Hansen, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Clique no player para conferir.
Traços de regionalismo
O modo de contar escolhido é também um dos aspectos que revelam uma aproximação do livro à tradição modernista. Segundo a professora, Água Funda reúne traços das duas gerações modernistas que a antecederam. Há o aspecto experimental, caracterizado pela fragmentação, por descontinuidades, mistura de perspectivas e justaposição de instâncias da realidade”. A obra é anunciada pela própria Ruth como esse “gigantesco brinquedo de armar” construído pela autora a partir da reunião desses casos, que não são dela, mas sim coletivos e oriundos daquele tempo e espaço.

Deus me castigue, se não é verdade, que eu não vi. Soube por boca do povo”
“Em comum com a segunda geração modernista, o livro apresenta traços de regionalismo, vertente predominante no romance dos anos 1930 e 40”, diz a professora Marise. O tempo e o espaço histórico são específicos: a região do Vale do Paraíba no contexto dos últimos anos da escravidão e primeiras décadas do século 20, em um contexto de uma modernização conservadora. “Apesar da indicação da abolição da escravatura, as relações sociais ainda seguem pautadas por opressão e violência; há o trabalho livre, mas os mecanismos de exploração e desumanização permanecem, assim como os preconceitos e machismo típicos da mentalidade patriarcal”, conta. A figura de Sinhá Carolina e os abusos cometidos contra os trabalhadores escravizados da sua propriedade evidenciam isso. “Apesar disso, Ruth não visa ao retrato documental ou objetivo da realidade”, destaca Marise.
Outras obras exigidas pelo vestibular da Fuvest também exploram a organização social brasileira, com o objetivo de evidenciar suas raízes violentas. Essas características podem ser observadas em Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, em Dois Irmãos, de Milton Hatoum, e também em Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, como no poema “Infância”. No caso da obra de Cecília Meireles, assim como em Marília de Dirceu, de Tomaz Gonzaga, percebe-se uma aproximação com Água Funda pelo fato de que nos três há o contexto do ciclo do ouro, em que a questão da terra se faz muito latente.

Texto sobre Ruth Guimarães na Revista da Semana, 1947 - Fonte: Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
A permanência dessas estruturas sociais e preconceitos são sintetizados na alegoria presente no livro de Ruth Guimarães, à qual o próprio título se refere. “A imagem da água corrente é frequentemente usada como símbolo de efemeridade e irreversibilidade, de tudo o que passa. A autora promove uma alteração nesse símbolo”, diz a professora da FFLCH. “A água funda, turva e misteriosa, agita-se um pouco, mas é imperturbável, indiferente à nossa existência e ao nosso sofrimento. Em outra camada, a imperturbabilidade da água se aproxima do sistema socioeconômico, que se mantém, ainda que ações individuais ou coletivas o abalem momentaneamente.”

A gente passa nesta vida como canoa em água funda. Passa. A água bole um pouco. E depois não fica mais nada"
Essa constatação de que os causos e os sujeitos-personagens que vivenciam os acontecimentos são incapazes e indiferentes para o funcionamento da lógica estruturante daquele tempo se faz presente também em Quincas Borba, de Machado de Assis. “Não é a ‘água funda’ que volta a serenar após a passagem da canoa, mas a constelação do Cruzeiro do Sul, que é indiferente ao sofrimento, à loucura e à morte de Rubião”, relembra Marise Hansen. A loucura e a perda da razão é outro tema comum entre as obras de Ruth e Machado de Assis. Enquanto Rubião perde a sanidade e se enxerga como Napoleão III após ser enganado por Palha e Sofia, a quem julgava seus amigos, a cruel Sinhá Carolina perde a identidade e razão ao ser abandonada e retornar à fazenda como Choquinha, cuja origem ou nome real ninguém conhecia. Joca é outro personagem cujo estado psíquico é sempre instável e nem o doutor Amadeu, representante da ciência, nem as rezas são capazes de curá-los.
Água Funda é, portanto, a reunião de causos desse espaço e tempo histórico, colocando em evidência os saberes populares e construindo uma memória desse período. “A partir do momento em que uma das preocupações da autora é manter vivas as tradições populares, o cultivo de uma memória coletiva se revela decisivo”, pontua. Ela é a base cultural das lendas trazidas do livro, como a da Mãe de Ouro, figura misteriosa da região que, na forma de luzes ou na figura feminina, indicava a presença do ouro durante a era da mineração. “A memória está impregnada de modo invisível, mas bastante visceral, no imaginário e no inconsciente coletivo. E a literatura tem um papel muito importante no registro e manutenção dessa memória”, reafirma a professora.
“Não há literatura sem memória”, disse Milton Hatoum
Para aqueles que farão a prova, Nayara ressalta: “O mais importante é ler, valorizar cada capítulo, cada causo, observando essa cultura da oralidade. Pensar a literatura em interface com outras áreas do conhecimento, para entender o contexto, pode ser de grande ajuda. Sempre sem esquecer que para uma boa análise é importante ler acima de tudo e ter atenção ao texto”.
A inclusão de Água Funda na lista de obras obrigatórias da Fuvest, para além da qualidade estética e literária do livro, ressalta uma dimensão do debate sobre a memória e sua construção.
O livro é o primeiro romance pós-abolicionista escrito por uma mulher negra e é publicado em um período importante para a literatura brasileira, marcado pelo lançamento de Sagarana, de João Guimarães Rosa, e pela publicação, dez anos depois, de Grande Sertão: Veredas. Naquele momento, a crítica literária, formada por figuras como Antonio Candido, recebe bem a obra, e Ruth Guimarães aproxima-se de nomes influentes, como Mário de Andrade e o próprio Rosa.
O reconhecimento da obra e da autora, entretanto, não permaneceu ao longo do tempo e não significou sua consequente inserção no cânone literário. Um exemplo disso é o hiato que houve entre a publicação da 1ª e da 2ª edição, que durou 57 anos. Ao se fazer presente, agora, na lista do vestibular, ao lado de nomes como Machado de Assis, Graciliano Ramos e Carlos Drummond, evidencia o movimento de revisão dessa tradição literária, como comenta a professora da FFLCH. “O sistema que inclui momentaneamente as mulheres no campo literário, para depois ‘apagá-las’, excluindo-as das antologias e historiografias, tem sido revisitado nos últimos anos.” Incluir a obra na lista do vestibular é um dos passos nesse sentido.
“Ruth Guimarães se identificava como mulher negra, pobre e caipira. Uma pesquisadora completamente empenhada em preservar a cultura popular”, afirma Marise. A autora nasceu em Cachoeira Paulista, interior de São Paulo, próximo à divisa de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Escreveu mais de 50 obras e estava engajada como professora, pesquisadora e entusiasta do tema, na proposta de valorização do folclore, das tradições e saberes do povo brasileiro. Em 2019, cinco anos após o falecimento da autora, o Instituto Ruth Guimarães foi criado na sua cidade natal com o intuito de ser um espaço cultural que mantém suas obras e memória.
Confira outras obras de leitura obrigatória da Fuvest 2025
- Marília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Quincas Borba, de Machado de Assis
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Dois Irmãos, de Milton Hatoum
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Nós Matamos o Cão Tinhoso!, de Luís Bernardo Honwana
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - A Ilustre Casa de Ramires, de Eça de Queirós
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Os Ratos, de Dyonélio Machado
Ver o texto / Clique aqui para conferir o vídeo - Água Funda – Ruth Guimarães

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