Desde o final do ano passado, o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC) da USP, em Bauru, conhecido como Centrinho, está habilitado como Serviço de Atenção Especializada às Pessoas com Deficiência Auditiva – conforme prevê portaria do Ministério da Saúde que aprovou diretrizes gerais, ampliou e incorporou procedimentos para a assistência a essa população no Sistema Único de Saúde (SUS).
“A nova habilitação é mais abrangente que a anterior. Permite ao Centrinho realizar procedimentos de média e elevada complexidade, atendimento pré-operatório, cirurgia e acompanhamento pós-cirúrgico de pacientes implantados, incluindo a concessão de implante coclear e outras próteses auditivas implantáveis uni ou bilateralmente, manutenção dos acessórios e a troca dos processadores de fala”, explica o médico otorrinolaringologista Luiz Fernando Manzoni Lourençone, chefe técnico da Seção de Implante Coclear do HRAC.
Com a publicação da portaria nº 2.776, de 18 de dezembro de 2014 – que previa a manutenção de acessórios do implante coclear, mas não habilitava o Centrinho a realizá-la com financiamento do SUS – e em virtude das necessidades dos pacientes e das demandas judiciais junto ao Departamento Regional de Saúde de Bauru (DRS 6), o hospital vinha, desde 2016, realizando a manutenção dos implantes cocleares com recursos de um convênio firmado com a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.
Segundo Lourençone, a nova habilitação e o financiamento do SUS permitirão mais agilidade e resolutividade aos usuários que necessitam de implantes nos dois ouvidos, manutenção nos aparelhos ou troca dos processadores. “Também beneficiará os pacientes que precisam de outras próteses auditivas implantáveis que o Centrinho já vinha oferecendo, mas sem financiamento do SUS, como as ancoradas no osso.”
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Somente em 2018, o HRAC realizou 98 implantes cocleares e colocou 23 próteses auditivas ancoradas no osso e de orelha média. O acesso de pacientes novos para implante coclear e próteses auditivas implantáveis no Centrinho é feito por meio das Centrais de Regulação do Sistema Único de Saúde (SUS), que podem ser regionais ou estaduais.
Tecnologia para ouvir
O implante coclear é um dispositivo eletrônico que estimula diretamente o nervo auditivo, por meio de pequenos eletrodos inseridos cirurgicamente dentro da cóclea, substituindo parcialmente as funções desta parte do ouvido interno. A tecnologia é indicada para pessoas com deficiência auditiva profunda ou severa que não se beneficiam com o uso dos aparelhos auditivos convencionais, que apenas amplificam o som.
Os critérios de indicação envolvem vários aspectos, como as características audiológicas (tipo e grau da perda auditiva), os benefícios com aparelhos de amplificação sonora individuais (AASI), as condições cirúrgicas, os aspectos cognitivos e emocionais e a terapia fonoaudiológica na cidade de origem.
Após a cirurgia para inserção dos componentes internos do dispositivo, é necessária a ativação computadorizada do implante – com o balanceamento dos eletrodos às condições de cada paciente –, além de acompanhamento com uma equipe formada por médicos, fonoaudiólogos, assistentes sociais e psicólogos, entre outros profissionais.
Já as próteses auditivas ancoradas no osso – também implantadas cirurgicamente – beneficiam pacientes com perda auditiva moderada a severa que não podem utilizar aparelhos convencionais por motivos médicos, como malformação de orelha ou otites crônicas. Trata-se de um dispositivo que transmite as ondas sonoras através do osso craniano diretamente para o ouvido interno. Ao contrário de outros sistemas de condução óssea, minimiza o risco de irritação da pele, e a estimulação direta do osso promove ótimos resultados na transmissão do som.
Implantes que mudam vidas
No dia 25 de fevereiro, usuários de todo o mundo comemoram o Dia Internacional do Implante Coclear, data do primeiro teste com implante auditivo em seres humanos, realizado em 1957 pelo francês André Djuorno.
A tecnologia provocou grandes transformações na vida de Lívia Mariana Guimarães Rodrigues da Silva, de 8 anos, e de sua família. “Lívia nasceu linda e saudável, veio para completar a família. Morávamos em São José dos Campos (SP) e, após a alteração no teste da orelhinha, foram necessários outros exames. A busca pelo diagnóstico não foi tranquila. Havia muitas incertezas. Passamos por muitos profissionais, pagamos muitos exames e ninguém arbitrava a condição da nossa bebê. Todos eram unânimes quanto às alterações, mas ninguém efetivava o diagnóstico”, conta a mãe, Aline Aparecida Guimarães Rodrigues da Silva, 41.
Ela e o marido, Marcos Augusto Souza Rodrigues da Silva, 42, já eram pais de Lucas Augusto Guimarães Rodrigues da Silva, que tinha dois anos quando Lívia nasceu e hoje tem 10.
“A impotência de não poder agir por não saber de fato o que a Lívia tinha era angustiante e nos ensinou um pouco mais sobre fé e paciência. Lembro-me de acordar de madrugada e ver meu esposo e pai extremamente dedicado, incansavelmente procurando algo na internet, até que descobriu o Centrinho. Lívia chegou ao hospital com cinco meses de vida. Em três dias, saímos com diagnóstico de surdez bilateral profunda e ela já em processo de investigação e acompanhamento para a possibilidade de ser uma candidata ao implante coclear. Lívia já retornou para casa com AASI [Aparelho de Amplificação Sonora Individual] e com data de retorno para continuidade do acompanhamento”, relata.
Aline recorda que a indicação para o implante coclear foi concluída e, com um ano e sete meses, Lívia foi implantada, recebendo todo o respaldo do Centrinho e da equipe de Implante Coclear no início do seu processo de reabilitação.
“Mudamos para Bauru para possibilitar que a Lívia estivesse dentro do centro de reabilitação de maneira integral, e ela então ingressou no Cedau [Centro Especializado no Desenvolvimento Auditivo do Centrinho, programa de apoio que visa a favorecer o desenvolvimento da audição e da linguagem oral em crianças usuárias de dispositivos auditivos]. Aprendemos que a ativação do implante coclear inaugura o som e dá um primeiro passo de uma longa jornada rumo à autonomia na comunicação”, completa.
De acordo com a mãe, Lívia recebeu o segundo implante coclear, no outro ouvido, com três anos de idade. “Desde então, caminha subindo um pódio por dia. Seus desafios não são pequenos, mas ela também não é. Quanto maiores os desafios, maiores as conquistas. Hoje, Lívia evolui bem, se encontra plena e bailarina. Ama cantar para Jesus. Está aprendendo flauta transversal. Na escola, tem aprendido que superação é um exercício, mas ela tem a favor pessoas que focam sua potencialidade, e não sua particularidade”, comemora Aline.
A condição de Lívia também estimulou novos rumos na vida acadêmica e profissional dos pais. Com formação em Educação Física e Teologia e tecnólogo em Sistemas Biomédicos, Marcos Augusto concluiu doutorado em Engenharia Biomédica pela então Unicastelo (atual Universidade Brasil), com período de cotutela pela Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB) da USP e pesquisa na Seção de Implante Coclear do Centrinho, com o objetivo de desenvolver novas metodologias para diagnóstico e reabilitação das alterações de equilíbrio corporal em usuários de implante coclear. Hoje, é professor universitário e empresário.
Já Aline, formada em Letras, era interessada pelo tema da inclusão e, quando engravidou de Lívia, cursava mestrado em Planejamento Urbano e Regional na Univap. O título do projeto era Políticas públicas inclusivas visando a pessoa com deficiência/surdez: consolidando direitos.
A convidada externa da banca foi Maria Cecília Bevilacqua, fonoaudióloga, docente da USP e pioneira do Programa de Implante Coclear do Centrinho, falecida em julho de 2013. “Acredito que não existem coincidências, e sim um propósito maior do que nossos planos e expectativas. O que era objeto de estudo para mim e um grande desejo de auxiliar pessoas com deficiência auditiva, materializou-se numa linda sapeca que me ensina todo dia que nenhuma teoria dá conta do desafio diário de superar o silêncio e tudo o que ele acarreta no entorno de uma criança surda e sua família”, analisa. Atualmente, Aline atua como orientadora educacional.
“A Lívia não trouxe um problema, ela trouxe a sensibilidade de percebermos o valor de chamar alguém que você ama pelo nome e ela responder: ‘Oi mamãe, eu te amo! Amo o meu pai e meu irmão’. Ouvir estas e tantas outras palavras garimpadas da surdez nos ensinou que esperança tem som e se soletra assim: I-M-P-L-A-N-T-E C-O-C-L-E-A-R”, finaliza a mãe.
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Centrinho e o implante coclear
Pioneira no Brasil, a equipe do Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP, em Bauru, realizou a primeira cirurgia de implante coclear multicanal (tecnologia utilizada até os dias atuais) no País em 1990, em adulto, e em 1992, em criança, sob a coordenação do médico otologista Orozimbo Alves Costa Filho, professor sênior da USP.
No decorrer dos anos, os estudos e a experiência clínica do Centrinho contribuíram com a formulação das políticas públicas na área. Segundo o médico Lourençone, o Programa de Implante Coclear do Centrinho é o maior serviço do País em número de implantes pelo SUS, com mais de 1.800 cirurgias realizadas e 1.400 pacientes implantados desde 1990, e cerca de oito a dez cirurgias por mês.
“Além dessa trajetória e do sucesso na reabilitação dos usuários, com o restabelecimento do sentido da audição e o desenvolvimento da capacidade de comunicação – essencial aos indivíduos –, a recente ampliação da habilitação do Centrinho é um progresso importante a ser comemorado”, destaca o professor José Sebastião dos Santos, superintendente do hospital e coordenador do curso de Medicina da FOB.
Adaptado de Tiago Rodella, da Assessoria de Comunicação do HRAC